Ruth Guimarães
E é certamente por influência da primavera, pois que setembro passou e os belos dias, queira ou não queira o tempo, sempre teimam de vir. Agora começam as nossas viagens, precedidas do clarim das vozes da garotada, quase de férias. Pois aqui começam as nossas viagens. No mapa, evidentemente. Nós as fazemos sem falta, por estas alturas. Já dispomos da carta de marear – é assim que se chama em nosso vocabulário romântico o guia prosaico. Já a penduramos na parede do quarto e ela nos parece tão esquisita e formosa, suscitando a visão de paisagem assombrosa, de mares furiosos, de altas montanhas, onde pairavam avejões que não existem. E campos de tulipas e moinhos de vento.
Também temos para a viagem uma coleção muito rica de alfinetes de cabecinha colorida. O verde é claro como os canaviais, o vermelho desesperado. O azul lembra os olhos das antigas bonecas alemãs. O amarelo é triunfante. O branco é uma gota de luz. Agora sim, é só viajar.
A segunda providência é falar na viagem a toda gente que conhecemos. Para que possamos acreditar nela.
E a terceira é arrumar as malas. Também para que possamos acreditar que desta vez vamos mesmo, de qualquer jeito.
Vejamos a mala: não esqueçamos de guardar aquele maiô azul, de helanca, há quanto tempo reservado! A sandália de sola de cortiça. A blusa de linho, branca, que parece feita de propósito para as paisagens marinhas. O lenço novo de seda, cor-de-sol, bem extravagante. A saia de cigana, rodada, com festões de flores amarelas e azuis. A máquina de fotografia e o binóculo. E não esquecer a braçada de rosas que é para atirar no mar, quando o navio partir.
E embora estejamos cansados de saber que não vamos, que o dinheiro não chega, vamos nos preparando, que sonhar não custa muito, para que não se acabe o suave engano.
Ouvi dizer que os monges sábios da Idade Média cogitavam de saber se um anjo poderia ir de um lugar para outro, sem passar pelo meio, especulação que não é tão irrelevante, como parece.
Em pleno século XXI cá estamos procurando um jeito de ir à Bahia, a boa terra, sem passar pelo meio, isto é: sem pagar a viagem. O pó de pirlimpimpim de Lobato só funciona no sítio do Pica-pau Amarelo.
Fada Morgana se perdeu nas florestas, virou flor dos bosques, pôs mini-saia, foi passear na rua Barão, ou em Paris.
Nossa Senhora anda tão ocupada, coitadinha, ajudando esses pobres, que não têm quem os ajude. A não ser uns artistas de TV, que deram para isso agora.
No mais, os santos são sérios por demais, que não consideram o fato de passear coisa digna de milagre.
Pois estamos de malas prontas desde já. Malas a serem desfeitas em fevereiro, depois de uma última demão nos arranjos e um último telefonema para saber de preços e horários.
Por enquanto, de olhos enxutos e alma leve, como quer o poeta, repetimos entusiasticamente a cada um:
“Adeus, amigo! Estamos indo pra Bahia! Quer alguma coisa de lá?”
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