Ruth Guimarães
Quando eu tinha 8 anos, São Paulo era uma cidade pacata onde não corriam ônibus, nem metrô. Na hora das ave-marias vinha um homem acender os lampiões de gás. As ruas (não havia carros) eram nossas. Podíamos brincar de tudo. De lenço atrás, de roda, de seu bobo está em casa, de pique-sem-fim - dá licença professor Pasquale Cipro Neto - de bolinhas de gude.
Passeio sempre aos domingos era em dois parques, muito sombreados, com cascatas de água cristalina e musgos em verde escuro subindo nas pedras. As famílias passeavam pelas alamedas em trajes de domingo, papai de colete, terno listrado e chapéu de pelo, e mamãe de saia de linho e blusa de palha-de-seda. Ali no jardim da Luz era a morada das fadas. Ali na Aclimação também era a morada das fadas. Não me lembro qual a mais bela e a mais sedutora. Que pedras eram mais frias e mais negras. Que árvores se lançavam para cima, de fuste erguido, levando-nos consigo, num arremesso de tirar o fôlego? Era domingo e queríamos deslizar naquelas pedras tentadoras.
Não sei nada, não me lembro de nada. Sei o que ficou nas minhas retinas castigadas, como diria o poeta, como uma cena de filme acontecido à noite... e foi assim:
Quem são esses homens esquisitos, mal vestidos, de macacão ou de uniforme, que andam por todo o parque? Para onde vão e de onde vieram e são ao mesmo tempo diferentes dos outros homens que caminham pelas ruas, e ao mesmo tempo sabemos que são homens, e dizem alguma coisa e clamam e urgentemente nos pedem socorro? Que tentam nos dizer essa gente de feição sombria, de gestos lentos, de esgares que não procuram dominar, de passos batidos, ritmados.
- Quem são eles? Eu pergunto e ao mesmo tempo tenho medo da resposta.
- São desempregados... – disse meu pai brevemente.
- Que fazem aqui? O que querem?
- Não sei! – disse meu pai. – Melhor irmos embora.
- Mas por que o senhor está com medo?
- Não estou com medo – disse meu pai.
Ao mesmo tempo sua face ficou sombria, e ele se calou. Por um breve momento assemelhou-se àqueles homens.
E então os passos começaram a bater em ritmo no solo, como um batalhão, mas não era um batalhão e eu fiz outra pergunta, a medo, cautelosa:
- Que estão fazendo aqui?
Meu pai assumiu um ar de quem escuta, de quem sonha. Respondeu, mas falava para si mesmo:
- Estão esperando.
Que poderiam aqueles homens esperar? E onde estavam as crianças, as mães, as moças bonitas? Os risos e as falas?
Aclimação? Jardim da Luz? Daria para saber, algum dia o que significava esta marcha? Daria para saber algum dia para onde vão esses homens que se limitam a esperar? Que conseguirão com essa espera? Por que não se vão? E quando se forem para onde irão?
As jaqueiras do parque agitaram a folhagem muito verde quando o vento passou. Quem plantou essa jaqueira fura-nuvem e que lá está para que a admirem? Quem chamou o vento Vu, que uiva em meio dos ruídos da cidade? Ah! o vento! Ah esse ulular do vento! Que dizem as folhas cochichando com o vento?
E esses frutos agressivos, de um amarelo desaforado, inçados de pontas e de escamas? E enormes. E enormes! E enormes...
Que fruto é este que tão alto está e que alto mora?
- É jaca. – disse meu pai.
E num momento, inesperadamente, desprenderam-se do tronco onde estavam aqueles frutos formidandos e bateram no chão ruidosamente.
E aconteceu uma coisa estranha. O batalhão estacou de súbito. O vento parou. De um pulo os homens se lançaram sobre os frutos. Não se viu muito bem o que aconteceu. Quando eles se levantaram, os rostos rígidos, o olhar distante, a boca crispada, não havia mais sinal de jaca. Nem cascas.
Foto de Botelho Netto |
- Que foi? Que aconteceu? – perguntei.
E meu pai respondeu só numa palavra:
- Fome!
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