terça-feira, 30 de abril de 2013

Um caso de fantasma

Ruth Guimarães 

Moravam numa fazenda dois compadres. Um rico que era fazendeiro, outro tão pobre que não possuía de seu nem a tapera onde morava; andava em farrapos, e não tinha muitas vezes o que comer. Num certo Natal, sentados diante do fogão quase apagado, o compadre pobre e mais a mulher, conversavam, com amargura, que não poderiam cear, por não terem o que comer. 

- Nosso compadre bem que poderia ter se lembrado de nós com uma leitoinha, não, mulher? 
- É mesmo! – e ela lambeu os beiços, de vontade de comer carne assada. 
- E se a gente fosse roubar uma...? 
- Credo – exclamou a mulher. 

Permaneceram em silêncio longo tempo, e, por fim, o marido resolveu: 

- Quer saber de uma coisa, mulher? Nós vamos roubar uma leitoa do compadre. Miserável! Não deu por bem, vai dar sem querer. Assim como assim, pior do que já estamos não podemos ficar. Até na cadeia o passadio é melhor do que esta casa. Lá, ao menos, ninguém morre de fome. Vamos embora! 

Lá se foram, marido e mulher, para a aventura, concertando um plano que deveria dar excelentes resultados. Ele seguiu abaixado pelo meio do mato, para entrar no chiqueirão do compadre pelos fundos. A mulher pôs um lençol na cabeça e ficou numa santa cruz à beira do caminho, fingindo-se de fantasma, para espantar algum possível viandante, que desconfiasse das furtivas idas e vindas do homem. 

Altas horas da noite escura, um andante passou, se benzendo, pela santa cruz. Olhou para dentro dela e viu um vulto de branco. Firmou bem os olhos e o vulto se moveu, agitando os braços. No mesmo instante, o fantasma começou a dar gemidos feios, como de quem estava morrendo. Não foi preciso mais. O homem desandou a correr pela estrada a fora e chegou à cidade botando os bofes pela boca. 

Ora, na entrada da cidade, morava um sapateiro sem pernas, que batia solas até horas mortas, pois o serviço era muito e ele não tinha ajudante. Estava entretido no remendo de um sapato, quando entrou um desconhecido como um furacão pela oficina a dentro. 

- Que é que o senhor que aqui a estas horas? - perguntou o sapateiro, mas logo se calou espantado, pois o homem estava mais branco do que cal da parede e cambaleava como um embriagado. 
- Puxe uma cadeira e sente, homem! Que foi isso? Que aconteceu? 

O homem sentou-se, e, depois de ter se acalmado e bebido água, por causa do susto, contou a história do fantasma, visto e ouvido na santa cruz do caminho. 

- Bobagem! – disse o sapateiro, fazendo uma careta de pouco caso. – Fantasma é coisa que não existe. 
- Existe! Eu vi! Vamos lá que o senhor vai ver também. 
- Não posso – disse o sapateiro. 
- Ah! Eu sabia! Ripostou o homem sarcástico. – Eu sabia. Não acredita, porque está aqui, no claro, no meio de gente. Mas não quer ir lá para ver. 
- Não tenho pernas, - replicou o sapateiro. Dê a volta nesse balcão e olhe. 

O homem rodeou o balcão, e, no impulso do momento, propôs: 

- Por isso, não, eu levo o senhor nas costas. 

O sapateiro montou no desconhecido e lá se foram ambos, para ver a assombração. 

E então aconteceu novamente uma coisa que pareceu espantosa. Quando iam chegando, a mulher viu o homem com um volume nas costas; como estava escuro, para que pudesse reconhecê-lo, pensou que fosse o marido com o leitão e perguntou: 

- Trouxe vivo ou morto? 

Ah! Foi um Deus-nos-acuda! O homem soltou um berro de fazer tremerem as pedras, jogou o sapateiro no chão e saiu correndo. E como corria! Entrou pela cidade como um pé de vento. Quanto não foi o seu espanto, quando, ao passar pela sapataria, pouco depois da entrada da povoação, viu lá o sapateiro sentado, remendando o mesmo velho sapato! 

- Meu Deus! – gemeu ele, pensando que estava vendo outra assombração. – Meu Deus! Eu joguei esse homem no chão, longe daqui mais de légua. Esse homem não tem pernas. Como foi que ele chegou na minha frente? 

Medo tinha e muito, mas, movido pela curiosidade, entrou na sapataria e perguntou: 

- Você é o sapateiro sem pernas? 
- Sou, sim senhor. 
- Não existe outro nesta cidade, aleijado como você? 
- Não, senhor. 
- Então foi você mesmo que foi ver a assombração, montado nas minhas costas? 
- Eu mesmo, sim senhor. 
- E como é que você, sem pernas, chegou aqui primeiro do que eu? 
- Olhe aqui na minha testa – disse o sapateiro. 

Aí o outro reparou que ele estava com a testa esfolada e aqui e ali com vestígios de terra, embora a houvesse limpado. Mas, mesmo assim, não compreendeu o mistério. 

- Que foi? – perguntou, sem saber o que pensar. 
- Isto? Quando eu que ficava sozinho lá no meio da estrada, naquele escuro, junto com uma assombração, resolvi correr de qualquer jeito. Não tenho pernas, corri com a cabeça. 

E como o outro fazia uma cara engraçada, de quem não percebe nada: 

- Punha a cabeça no chão, e virava uma cambalhota. Tornava a pôr a testa no chão e dava outra cambalhota. 

O desconhecido deu muita risada e disse: 

- Assim é que você não acredita em fantasma? 

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