terça-feira, 30 de abril de 2013

Travessia

Ruth Guimarães 

Li de uma assentada o pequeno grande livro de Edmundo de Carvalho, chamado Travessia e, inesperadamente, o encontro trifásico. Uma das colunas dessa tríade é o processo literário; insinua mais do que narra, intuímos desses relatos muito mais do que nos foi expressamente contado. Assim, devemos somar o contado ao sugerido, pela ordem: 

Literariamente, a linguagem é excelente, as imagens muito vívidas, bem postas as sugestões. 

Encontramos a cada passo imagens poéticas, como a do galo “que cumpria o seu compromisso com a madrugada”, e o modo novo de descrever a partida, afirmando que a “caravana fez a estrada”. 

Em suma, é um estreante que promete muito. Dono de linguagem bem burilada, com um manejo da arte de narra, conta mais do que está escrito. 

No livro, secundariamente, o que avulta do todo é uma sociedade rural, a sua cultura típica, uma filosofia acumulada de bem viver, adaptada à terra e à gente por longa vivência. Um folclore assim posto é verdadeiramente pesquisa, ou serve para base de pesquisas. Está presente um acréscimo de autenticidade. Sem analisar, o autor nos põe em presença do folclore da região, o mais verídico, o mais certo, e o mais vivido. O que é mais importante no livro sob esse aspecto, é o valor do testemunho. Como vive esse povo? O que pensa? Quais são as suas quimeras? E os seus mitos e duendes? Quais as acontecências que nos dão o seu retrato veraz, de corpo inteiro e de alma inteira? Tudo isso está ali, com exemplos verídicos, no linguajar valeparaibano. Lendo o livro, fazemos uma viagem de espanto a espanto, num Brasil desconhecido, apesar de a meio desvendado por Valdomiro Silveira, Amadeu de Queiroz, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Amadeu Amaral, Mário de Andrade. Nessa viagem, em que se pode prender o Pererê no redemoinho de vento e prendê-lo numa garrafa; nesses caminhos onde galopa a mula sem cabeça e gemem as almas em pena, vemos também as festas, a alegria da banda passando, a boa montanha das goiabas maduras despejadas no chão, o leite da vaca preta que, dizem, é mais forte e a culinária dos doces apresentada nas tachadas de goiabada. 

Viajamos ao longo de um tempo que se acabou. E a notícia é tão viva! dá vontade contar igualmente os nossos acontecidos, tão longe nos leva esse mágico memorialista. 

A terceira e mais importante desse tripé mágico em que se assenta o livro, ou seja, como se resolve a identidade do narrador, que se conta a si mesmo sem usar uma única vez o pronome EU, o primeiro pronome pessoal. Lá não estou EU, mas a infância perdida no mundo. E há o mundo. O menino que comparece é realmente o narrador, o protagonista, mais completo do que o compadre Quelemém, de Guimarães Rosa. Está simplesmente no país da quimera, para onde nos leva comovidos, mas também dolorosamente na vida, para onde nos leva comovidos. 

“Aquela figura roubando a idéia do menino até que um pássaro colorido cruzava sua visão e o levava a persegui-lo. Pronto. Lá estava ele de novo servido pela força da vida.” 

O menino perpassa o livro inteiro, a vida toda, o universo. Ele é. Ele está. Ele palpita em cada circunstância. Está inteiro, saindo na caravana de autos pela madrugada. Está risonho inteiro na procissão, puxando o laço do vestido das velhas rezadeiras. Está espiando as Torquatas. Está vivendo integralmente o sonho. Viu a corda, o tenebroso enforcado. Ouviu as modas de viola. Assistiu ao primeiro assassinato. Brincou todos os brinquedos da loja da lembrança. 

Conheceu a negra pó de café. E viveu nesse infinito, que sobreveio à noite do assassinato. E, de repente, se duplicou no menino preto, enjeitado, o Aparecido. 

Esse menino abreviava as histórias da Don’Ana, as fantásticas, cada repetição, cada palavra e se empolgava com os contos que incluíam Joaquim Camarada, o feiticeiro. O JC. A comunhão, a aceitação. 

O juntar-se ao feiticeiro é contada assim: 

“O menino teve um contato com JC no dia em que a sua mãe ofereceu ao velho um prato de comida. O homem se sentou no chão, e o menino, curioso que sempre fora, aproximou-se do velho e sentou-se no chão, junto dele, e com ele comeu no mesmo prato.” 

O menino é pois a testemunha, o protagonista, o narrador. Nessas funções, percorre episódios de alto lirismo, e de quente humanidade. 

Não é livro para se ler uma vez só, nem duas, nem três, mas muitas, para mergulharmos deliciosamente, deliciadamente, no fabuloso e esquecido país da perdida infância, que já esquecemos, mas é a parte mais comovente da nossa verdade.

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