terça-feira, 30 de abril de 2013

Sobre Raquel

Sobre Raquel 

Ruth Guimarães 

Era no tempo em que pontificavam Vicente de Carvalho, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Valdomiro Silveira, Mário de Andrade, preparando-se já para o grande salto em direção à brasilidade já com respostas à tomada do nosso futuro. 

Ela nasceu derrepentemente junto com o modernismo, mais ou menos em 1922, mulher dos novos tempos, brasileira, e no entanto com a límpida fala do português de antanho. Clara, rica e antiga. E dos antigos tinha a alma e o sofrer. Combatente, guerreira, sofrida, mulher se emancipando na vida e na literatura. Quem é maior? A escritora ou a mulher? 

O Quinze foi o livro de estréia de uma menina de dezenove anos não naturalista não realista de simbologia zero perturbando os pacatos arraias da simbologia nacional, mas eis que se tratava de livro de mulher, de uma simplicidade e de uma verdade de doer. A autora era filha de um daqueles coronelões plantadores de roças e o espanto tomou conta dos arraiais literários da cidade grande; ao mesmo tempo acompanhava pari passo a novidade que se fazia sentir avassaladora no Brasil e no mundo. Raquel tinha vindo para o Rio e queria escolher os seus caminhos numa época em que isso não era possível nem necessário, talvez. O sucesso desse livro foi realmente escandaloso para a pequena e antiquada Rio de Janeiro. Assim! Não se sabia o que falar nem o que pensar nem analisar: o que tinha o livrinho da moça? 

Nem idéias nem soluções nem filosofia, apenas chão brasileiro. Apenas a desgraça. Livro de mulher. 

Raquel tinha o que contar e contou. E contou o que viu, singelamente. Sem literatura. Ela própria fez mais tarde uma autocrítica não foi um grande livro. Nada de pessoal, apenas uma narrativa de quem viu tudo, de quem contou quanto viu e que quando contou tinha os olhos rasos d’água. E o leitor também chorou. Vida de mulher que a vida por si se conta. A vida sentida. A vida. Isso em palavras escolhidas e de uma vida interior com a música e o ritmo inovados em direção à vida nova. Tudo nosso. Nosso chão. Nossa terra. Nosso fracasso. Nossa dor. 

Deve-se dizer que o português casta linguagem dessa escritora é primoroso. Ah! Ela sabe as palavras. Ela sabe cada palavra de sua mágoa, da nossa mágoa. 

Agora que tão poucos escritores sabem a língua descobrimos e repetimos esta coisa enorme: tínhamos aí uma escritora que sabia escrever. Tão sozinha, tão mulher entre tantos homens que lutavam com as palavras. Tão singela, tão verdadeira. É nisto que está sua força, nela encontramos a nossa verdade e a sua compaixão. 

Começou a partir d’ O Quinze uma vida tão rica, tão extensa, tão densa, escreveu contos, teatro, mil crônicas e ela própria dizia que não gostava de escrever. Mas em tudo punha a sua alma, a nossa alma. Ela alcançou as mulheres, seu livro Dora Doralina com esse arranjo de fala inspirou a escritora goiana Cora Coralina. A sua palavra vivida e sofrida era alimento, porque viva e sofrida. 

Eu estava no Rio de Janeiro, nem sei fazendo o quê, e Raquel na sua Ilha do Governador. Raquel por um motivo qualquer falou de mim e me indicou como a “adorável Ruth”. Não tomei como avaliação, mas como a palavra eia! Vamos! Algum dia nós chegamos lá. E com isso eu estou aqui.

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