terça-feira, 30 de abril de 2013

Semente

Ruth Guimarães 

E foi um dia encontrei uma bonita semente, um caroço lustroso que parecia ter uma floresta dentro. E como estivesse chovendo naquele momento, uma chuvinha dessas chamadas criadeiras, fina e mansa, polvilhada de branco, cobrindo a cidade de um véu de noiva, pareceu-me que poderia plantá-la. Não pensei em verificar se era lua minguante, ou se o mês era sem rrr. Quis pôr na terra a semente estranha, grande, preta, semente-rainha, sadia, bem granada, de casca lisa e unida. Não tinha depressões e não se enrugava. Ovalada, chata, lisa, brilhante, limpa, com uma risca branca, quase no centro no centro, o que lhe dá um ar cômico de careta. 

Achei-a atirada à beira de um caminho, longe de árvore, não reconheci o fruto de onde provinha. A semente de jenipapo é marrom, não assim. A de fruta-de-conde menor e mais fosca. A de fava mais delgada e chata. A de ingá... será ingá? Será jataí? 

Como não sabia de que fruto se tratava, como saber em que tipo de terra plantaria? de que terra gostava? Se a vermelha, que satisfaz o pessegueiro. Se a do alagadiço, onde viça o maricá. Se a gorda, estercorosa, boa para abóbora e melancia. Se é fruto do quente, como a manga, a goiaba, o araçá e a pitanga. Se é fruta do chão paulistano, de muito frio e de muita chuva, terra-mãe de pêra dura, e de ameixa. Onde frutificam as nogueiras, o castanheiro. Onde os pinheiros atiram para o céu a galharia pontuda, onde a macieira e a cerejeira florescem. E até azeitona, a escura oliveira, se plantar, dá.

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
Para essa semente-de-não-sei-o-quê, o buraco não precisa ser grande. Bobagem procurar a enxada que anda enferrujando pelo quintal. Basta o facão. Bastam as mãos. E abro uma cova de meio palmo na terra fofa dos fundos, perto da cerca. 

Ali está deitada a semente, promessa de vida. Sobre ela desce a terra peneirada, fina como farinha, e os úmidos torrões que se quebram, desbrugados entre os dedos. E por cima a terra solta da superfície. 

Acabou-se o trabalho e começa o mistério. Apagou-se uma vida e começa a ressurreição. Chove. Vejo no céu os anjos de mãos postas, chorando. 

O que começa verdadeiramente é a espera. Que os dias longos se encadeiam uns aos outros e nos arrastem no seu carro cor-de-cinza das horas. O tempo marasma numa vagareza desaforenta. Depois da chuva virá o sol e virá a chuva novamente. Nada tem pressa na natureza. A seu tempo o broto espiará por uma abertura na terra e crescerá de modo tão lento, que não se dará tento disto. E haja tempo para virem os galhos, e engrossar o tronco e acontecer a primeira florada e surgirem os primeiros frutos. E amadurecerão quando chegar o outono: casca dourada? Roxa? Marrom? Vermelha? Macia e cheirosa ao sol e ao vento? 

Ah! Quantas sementes deixamos cair, “ao longo do caminho de nossas vidas” sem saber que frutos vingarão.
Botelho Netto
Foto de Botelho Netto

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