Ruth Guimarães
Casualmente me caiu nas mãos o livro Terra Martirizada de Dom Antonio de Almeida Lustosa, a respeito da seca no Ceará. Escrito em linguagem despojada, põe-nos diante dos olhos o quadro horrível do que acontece, quando o fantasma da seca estende as asas de cinza e morte sobre o Nordeste e crava as garras na terra comburida. E sentimos a ânsia da espera, quando o Nordestino vai adiando sucessivamente o termo de uma obstinada esperança e a luta pela água recomeça a todas as horas, contra os elementos. Contra a indiferença. Contra o abandono. Contra a corrupção. Contra o inenarrável sofrimento. Contra o crime nefando de lesa-humanidade, que é o abandono desse gravíssimo problema.
Cada um luta com as armas de que dispõe contra o inimigo comum. O livro também é um soldado de fileira.
Dom Antonio luta com duas armas. Arcebispo de Fortaleza, pastor de almas, conforta os que sofrem e se dirige diretamente aos sacerdotes da sua terra flagelada. Escritor e sociólogo, procura esclarecer as causas do fenômeno e busca possíveis remédios. E eis que nos deu um livro patético na sua simplicidade, sem queixas nem clamores, mas que é um libelo contra uma situação que não pode perdurar. Senhor! Chegue até vós o meu clamor! Senhores do mundo! Cheguem até vós nosso protesto e nossa cólera!
Já se aventou a hipótese de desviar o velho Chico, de águas poderosas, para umedecer o Nordeste inóspito. Mas o processo de desertificação prossegue, sem descanso, e nada se faz. Não digo desviar o São Francisco que não sei que calamidades possam advir daí. E nós somos campeões de começar a fazer coisas, de que depois nos arrependemos e são dinheiro e mão-de-obra jogados fora. Enquanto se conversa as coisas acontecem. Instala-se o deserto numa banda do Brasil. Na outra afogam-se os brasileiros.
Tratando-se de um livro de religioso, não é de estranhar que nele figure especialmente um capítulo destinado à Providência divina, que não desampara seus filhos, diz ele. E exemplifica falando dos avoantes; da capoeira, onde se encontra alguma fruta para matar a fome e a sede. Em alguns lugares o caju é abundante, em outros a mangaba, o caqui, a gabiroba. Para os que conhecem esses frutinhos do mato, de caroço muito e sumo quase nenhum, é fácil entender e calcular o que representam no engambelar a fome. Encontrava-se ainda peixe abundante no mar e profusão de búzios. Estamos vendo todos os dias, na TV, o peixame virado de barriga pra cima, morto, envenenado. O nordestino ainda não entregou os pontos. Há ainda o juá, a oiticica, a canafístula, solanáceas, cactos de folhas coriáceas, o espinhento xique-xique, o ficus-benjamim. Quando tudo isso falta, recorre-se à macambira, uma bromeliácea rústica, que desafia a seca e viça no carrascal, venenosa, áspera, intragável. Evita a inanição, mas traz doenças. E há ainda a mucunã, leguminosa, que a fome obriga a servir de alimento. À força de a lavar, fazem dela um horrendo comestível. Muitas vezes mata.
Dia de São José, a 19 de março, extingue-se a última esperança de viver e sobreviver. Cearense está treinado em se sustentar a juá e xique-xique, de indiferença e esperança, de confiança na Providência e nas promessas do governo.
Agora, que no Sul a água é demais, e no Nordeste, de menos, teremos alguma providência, sem ser a Divina, tanto lá como cá?
Ignoramos completamente os processos divinos e suspeitamos que sejam impiedosos contra a negligência humana. Primeiro não estamos acostumados nem nos adaptamos a uma vida difícil. Não nos acontecem milagres. Avoantes não há no Sul. Elas aparecem no rigor da seca, em nuvens. São uma espécie de pombas semelhantes às rolas. Acontecem aos milhares em certos lugares em que há talvez sementes. Deixam-se matar com facilidade, porque, uma vez que o bando baixou, elas se movimentam em vôos curtos. No campo em que pousam encontram-se ovos, aos milhares. O caçador pode apanhá-las uma a uma, com a mão, pelo bico, é um milagre, uma oferta, uma dádiva, uma surpresa. Recordamos as codornizes que Deus enviou aos hebreus no deserto. Nós, do sul, ainda não merecemos esse adjutório. Além de não merecermos as avoantes, não temos nem mangaba, nem murici, nem caju, nem gabiroba.
Campos do Vale do Paraíba, despotismo de barba-de-bode, de cupim, e de rabo-de-burro!!!
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