Ruth Guimarães
Foto de Botelho Netto |
Estas não são endechas a um rio defunto, mas o canto triunfal das manhãs de antigamente, quando do tempo em que ele era vivo. Séculos bíblicos em que havia peixe. No tempo em que a molecada tomava banho de rio e ainda era possível enxergar no fundo d’água a areia cintilante e os lambaris de rabo vermelho.
Vamos datar melhor esta cantiga, que ocorria quando meu rio e eu adolescíamos. Lá para meados de outubro, quando as chuvas mal começavam, o rio, tendo crescido e amarelado, principiava de se apinchar debaixo das moitas, aperparando loca de traíra. Então era tempo de cascudo, um peixe feio, meio à feição de monstro, de que havia duas qualidades. Uma que dava agarrada nas pedras, e outra um tal de sobe-serra, nas umidades de beira-rio e que se agitava nas locas lamacentas até parecendo habitante do seco.
Pois então a gente foi caçar cascudo. A ida foi um farrancho alegre, houve risos, piadas, falatório, pessoal contador de vantagem, abrindo os braços assim, para mostrar o tamanho do peixe pescado. E cantoria, apesar de que brasileiro não era muito de cantar. É agora, depois da televisão. Até dona Adelaide, que gosta mesmo de pescar é de caniço e anzol, foi. Até o Toninho do Ciano, pescador afamado dos dourados de dezessete quilos e mais foi. Havia sim, dourado, diz que ova semeada no rio pelo Ademar de Barros. Até João Serafim, que uma vez andou correndo da polícia, porque virou o peixame todo do rio, com uma carga braba de timbó, foi.
Esse João foi o tal que jogou a rede, certa noite muito suave e de muito luar. Era quase meia-noite. A rede pesou no arrasto.
Será muito peixe? João se indagou. Em seguida estremeceu. Será algum coitado que se afogou?
Era sereia. A coitadinha veio se batendo, o olho verde lumiando, a boca linda aberta na aflição, o cabelo emaranhado, cabelo verde lustroso, cheio de onda. Foi suspirando, suspirando e se acabou. Acabou de morrer, sumiu. Ficou uma esteira de espuma no rastro da canoa, por cima das águas. E na rede, nada, disse ele. Nem um buraco. E não se sabe como, disseram os companheiros, pois rede tem bem mais buraco do que linha.
Noite de lua, eu disse? Noite de lua muita, noite de muito luar. Alguém explicou que estava que era um dia. Sobre a escureza da noite uma toalha de prata se estendeu. O relógio da igreja tinha varado o coração do tempo com onze chicotadas de bronze, sem poder quebrar o encanto.
Foi quando o rio dormiu. Não se ouviu mais nem uma bulha. A água era óleo grosso, parado. Cada pescador, deitado de bruços em cima das pedras, pegou a cutucar com a ponta do facão, embaixo do negrume, água, pedra água, o cascudo negro, a nação de peixe mais feia que há. Parece um sapo, parece um monstro. Peixe e pedra cercados de um halo de prata.
Com a outra mão, segurava um balaio, por baixo, para aparar o bicho.
O cascudo é feio por fora e bom por dentro, como muita gente. É só sapecar na brasa para arrancar a horrenda carapaça, e aparece a carne branca: diluente, malaxada....
Já não conto da fogueira, do cheiro do peixe bem temperado, frigindo. Do rio que recomeçou sua cantiga. Ninguém não viu mutuca, nem muriçoca, nem pernilongo, o foguinho espantou o frio.
E era noite muita, de muito luar.
Foto de Botelho Netto |
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