Ruth Guimarães
Foto de Botelho Netto |
Todos nós sabemos que a igreja é a maior de todas as
forças conservadoras. Pois ainda é menos conservadora do que o povo. Assim é
que, enquanto ela aceita e modifica uma série de coisas, o povo ainda se
empedra em tradições não raro milenares, não raro absurdas, pois perderam há
muito tempo sua razão de ser – porém atuantes, receitas de vida para uma parte
sensível da multidão, e válidas, como nada mais poderia fazê-las a não ser o
tempo. Assim a ausência do hábito nos religiosos, trocado por roupa mais
cômoda, que o próprio religioso considera útil e funcional, facilitando-lhes em
muito a tarefa, é raro alguém aceitar isso com naturalidade. As mulheres,
vestais dessas tradições, são as que mais protestam. As freiras resistem mais que
os padres e ainda as vemos e as veremos por muito tempo levando com graça e
dignidade os seus trajes tão lindos, mas tão inadequados. A missa em português
encontra fortes opositores que não sabem sequer porque se opõem. Como resistem
sem um motivo apresentável a qualquer alteração repentina às descobertas da
ciência, às injeções, ao tratamento pré-natal, ao exame pré-nupcial, à vitória
do Corinthians sobre o Santos, e a outras atualizações necessárias. Até a
mudança de hora do relógio, uma hora só, que nem altera nada à ordem das
coisas, é motivo de ataque. Uma das coisas que mais mereceu desaprovação do
povo foi a mudança do sábado de aleluia para o domingo da ressurreição, embora
em certa época deva ter havido alteração contrária, isto é, o domingo de ressurreição
passou a começar no sábado ao meio-dia. Na capital essas comemorações há muito
inexistem. Nos bairros há ainda um ou outro Judas malhado entre muitos gritos e
algazarra muita. Mas era no interior que se faziam as, digamos, comemorações,
com malhação de Judas, e molecada na rua pedindo aleluia. No sábado. Nove
horas, primeiro o toque dos sinos, que jamais se fazia alguma coisa sem o
bimbalhar festivo. E o toque da sirena das fabriquinhas, do apito das máquinas,
das buzinas, de latas batendo, e a meninada pobre aos magotes pelas ruas,
parando nas casas onde se lhe atiravam amendoim, pinhão, dinheiro, balas. Nas
casas onde não lhe jogavam nada explodia um alarido, aos gritos de: Muquirana!
Muquirana! Pão duro! Pão duro! E assim ia a festa pelo dia a fora, aleluia!
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