terça-feira, 30 de abril de 2013

Regresso

Ruth Guimarães 

Que eu gosto de vagabundear, gosto. Devo ter uns toques de cigana, sei lá. Minha avó também era cigana de grande saia de folhas, oito panos à roda, estampada de rosas; e muito nos viram andando a pé uns poeirentos caminhos da Cachoeira: a sombra da Mata Cabrito, a Santa Rita, onde assistia um feiticeiro, hoje morto; a estrada de Santa Cabeça, a estrada de Canas e a do Embaú, as trilhas do Morro Vermelho e da Lagoa Seca. Dela me veio talvez o amor pelo sol e pelas estrelas. Adorávamos a água na folha nova do inhame, concha verde como uma oferenda, e amávamos os riso que corriam para longe. O saibro escorregava sob o passo, quando perseguíamos, sem jamais o alcançar, o azul das distancias. 

Acontecia-nos deixar a vida para trás, e íamos não importava para onde, sem plano, sem dinheiro, a pé, na aventura, para ver não importava o que ainda não fora visto. É empolgante ouvir a música de palavras estranhas e balancear na cadencia de outros ritmos. 

Essa vida é tão múltipla e tão escasso o tempo! Aí está, E quão deliciadamente ainda me vou por esses caminhos! E com que penas os desando! E é por isso que posso falar de cadeira do que há de melhor, quando se vai e se vem. Eu sei. A coisa mais linda nas viagens é voltar para casa. 

Tenho procurado saber que doce mistério nos faz suspirar por esse refúgio, seja casa cheia de crianças e de amor, seja sombria e deserta, ou simples quarto de pensão, apertado e impessoal. A casa. Que magia a faz nossa e nos faz dela? O quê, nela, nos conforta e nos consola? Que há com a casa? Os surrados móveis? Novos que fossem e seriam acolhedores. As patinadas paredes? Mas pode ser moradia recente e nós lhe daremos sem regatear o nosso afeto. É, será sempre, muralha, trincheira, esconderijo, âncora, abrigo, sombra. Nela estamos bem. Nela nos entregamos ao nosso eu, sem máscara, com toda a confiança. 

Da ultima vez que cheguei, foi com o repetido suspiro de alívio que me confiei à sovada cadeira de braços, entre paredes bem precisadas de pintura, coitadas! Havia de novo uma goteira. Deixem-me contar de outro jeito: havia uma nova goteira. Lá estava a mancha. À entrada, o degrau parece que me reconhece, estalou devagarinho, cumprimentando. O espelho também me reconheceu. Diante dele não estava a estranha de outros reflexos. Precisei de andar descalça pela casa toda, pois na sapateira, como de costume, nenhum sapato, nem novo nem velho. Estariam por aí. Depois de vasculhar com uma vassoura, embaixo das camas, encontrei dois pés direitos de chinelo. 

Quimporta lá? 

Aqui sou rainha, sou czar, sou Deus, e como amo esses chinelos doidos! 

Então não é isso a felicidade?

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