Ruth Guimarães
Foto de Olavo Botelho |
Hoje não existe mais quaresma. Mas houve tempo em que na quaresma se guardavam violas em sacos, pendurados nas paredes e cobriam-se os espelhos e quadros com metros e metros de fazenda roxa.
Poder-se-ia então falar melancolicamente de crepúsculos, de dias sombrios, das manhãs graves de neblinas e de outros assuntos tão vagos e nebulosos quanto esses, se bem que sexta-feira, dia-mor do cristianismo, desmentindo a tristeza postiça reinante, fosse um dia escandalosamente claro e alegre, quase sempre, gritando luz, glorioso, no sentido natural de sol quente, de beleza, de pureza do céu azul, de transparência no ar. A natureza nunca condescendeu em participar das farsas humanas. Mas então, nos quarentas dias, o preceito era muito bem cumprido e as práticas sagradas inspiravam salutares pensamentos.
Hoje nada disso importa, sinal da evolução dos tempos.
Porém havia fatos que somente sucedem na quaresma. Para verificá-lo, bastava tomar um trem em qualquer estrada, e desembarcar em qualquer estação, sem lhe indagar o nome. A cidadezinha teria duas ruas principais cruzadas. No fim de uma delas, numa praça circundada de palmeiras a igreja matriz. Na outra, um cinema, sempre chamado — Rialto, Ideal, Independência ou — Rio Branco. Quinta-feira-santa. Anunciariam indefectivelmente, o drama sacro, em dose extraordinária duplas partes, intitulado Vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou, então, O rei dos reis, o grandioso filme de De Mille, — que só foi grandioso quando saiu. Parece que, afinal, todas as coisas diminuem com o tempo.
A esse cineminha de cidade pacata, comparecia uma estranha fauna, encolhida e sussurrante. Se nada acontecesse de anormal, ficavam todos os espectadores muito comovidos com a fuga da Virgem — uma virgem de olhos pintados de negro e de roupagem ampla, de um azul que doía na vista e na alma — e também com os suplícios do Homem-Deus. Todos se indignavam convenientemente, com a malvadez dos soldados romanos, de tanga e de alpercatas — e a dos judeus de perfil adunco, sombrios e vociferantes. Isto se nada acontecesse de anormal. O diabo é que às vezes acontecia.
Em Itanhandu, numa fazenda, certo coronel (da guarda nacional), mais evoluído que os seus congêneres, resolveu exibir para os caipiras O rei dos reis que então fazia furor. Para isso, levou do Rio um aparelhamento completo com a câmara acionada a pilha e esta, por sua vez, com eletricidade gerada por alguns roletes de carvão. Parece inútil explicar que não havia luz elétrica. Às tantas, quando Jesus arquejando, mal começava a subir a ladeira, acabou o carvão. O operador ficou todo aflito mas entreviu de repente uma solução muito simples: passar o filme o mais depressa possível.
E os caboclos que assistiam a tudo com lágrimas nos olhos, viram esta coisa maluca: Jesus desandou a correr, e, caindo levantando-se, tropeçando alcançou o alto do calvário em três pulos.
Antes fazia-se jejum com abstinência de carne, todas as quartas e sextas-feiras da quaresma, e, na semana santa, inteira a partir de terça-feira de trevas. No sábado da aleluia, eram aqueles regabofes de marcar época.
Hoje o clero houve por bem nos dispensar do jejum com abstinência, mas como não há carne de qualquer modo, até os ateus cumprem o processo. Parece que a diferença foi somente [enuncial], pois a forma continua a mesma. Para os estômagos, isso não constituirá verdadeiramente uma diferença. Vejamos se tal abstinência terá mais valor aos olhos do bom Deus que vê e permite tudo isso que nós também vemos e permitimos. Bendito seja o nome do Senhor.
Este ano teremos como no ano passado Paixão e morte do povo, com jejum, abstinência, fome e filas. A não ser que aconteçam episódios assimétricos, a eleição de novos prefeitos, por exemplo o que interromperá ou não a tragicomédia.
Circo já tivemos demais e continuamos tendo. O que falta é pão.
Ao que parece, tudo correrá como de costume, às mil maravilhas, a não ser que o espetáculo descambe para o burlesco, à revelia dos atores ou com a cumplicidade deles, o que não é uma solução.
E então todos nós que rimos muito menos, de uns tempos para cá, poderemos encolher os ombros e comentar com um tantinho de amargura:
— Sim senhor! Acontece cada uma na quaresma!...
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