segunda-feira, 22 de abril de 2013

Quaresma

Ruth Guimarães

Olavo Botelho
Foto de Olavo Botelho
Hoje não existe mais quaresma. Mas houve tempo em que na quaresma se guardavam violas em sacos, pendurados nas paredes e cobriam-se os espelhos e quadros com metros e metros de fazenda roxa.
Poder-se-ia então falar melancolicamente de crepúsculos, de dias sombrios, das manhãs graves de neblinas e de outros assuntos tão vagos e nebulosos quanto esses, se bem que sexta-feira, dia-mor do cristianismo, desmentindo a tristeza postiça reinante, fosse um dia escandalosamente claro e alegre, quase sempre, gritando luz, glorioso, no sentido natural de sol quente, de beleza, de pureza do céu azul, de transparência no ar. A natureza nunca condescendeu em participar das farsas humanas. Mas então, nos quarentas dias, o preceito era muito bem cumprido e as práticas sagradas inspiravam salutares pensamentos.

Hoje nada disso importa, sinal da evolução dos tempos.

Porém havia fatos que somente sucedem na quaresma. Para verificá-lo, bastava tomar um trem em qualquer estrada, e desembarcar em qualquer estação, sem lhe indagar o nome. A cidadezinha teria duas ruas principais cruzadas. No fim de uma delas, numa praça circundada de palmeiras a igreja matriz. Na outra, um cinema, sempre chamado — Rialto, Ideal, Independência ou — Rio Branco. Quinta-feira-santa. Anunciariam indefectivelmente, o drama sacro, em dose extraordinária duplas partes, intitulado Vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou, então, O rei dos reis, o grandioso filme de De Mille, — que só foi grandioso quando saiu. Parece que, afinal, todas as coisas diminuem com o tempo.

A esse cineminha de cidade pacata, comparecia uma estranha fauna, encolhida e sussurrante. Se nada acontecesse de anormal, ficavam todos os espectadores muito comovidos com a fuga da Virgem — uma virgem de olhos pintados de negro e de roupagem ampla, de um azul que doía na vista e na alma — e também com os suplícios do Homem-Deus. Todos se indignavam convenientemente, com a malvadez dos soldados romanos, de tanga e de alpercatas — e a dos judeus de perfil adunco, sombrios e vociferantes. Isto se nada acontecesse de anormal. O diabo é que às vezes acontecia.

Em Itanhandu, numa fazenda, certo coronel (da guarda nacional), mais evoluído que os seus congêneres, resolveu exibir para os caipiras O rei dos reis que então fazia furor. Para isso, levou do Rio um aparelhamento completo com a câmara acionada a pilha e esta, por sua vez, com eletricidade gerada por alguns roletes de carvão. Parece inútil explicar que não havia luz elétrica. Às tantas, quando Jesus arquejando, mal começava a subir a ladeira, acabou o carvão. O operador ficou todo aflito mas entreviu de repente uma solução muito simples: passar o filme o mais depressa possível.

E os caboclos que assistiam a tudo com lágrimas nos olhos, viram esta coisa maluca: Jesus desandou a correr, e, caindo levantando-se, tropeçando alcançou o alto do calvário em três pulos.
Antes fazia-se jejum com abstinência de carne, todas as quartas e sextas-feiras da quaresma, e, na semana santa, inteira a partir de terça-feira de trevas. No sábado da aleluia, eram aqueles regabofes de marcar época.

Hoje o clero houve por bem nos dispensar do jejum com abstinência, mas como não há carne de qualquer modo, até os ateus cumprem o processo. Parece que a diferença foi somente [enuncial], pois a forma continua a mesma. Para os estômagos, isso não constituirá verdadeiramente uma diferença. Vejamos se tal abstinência terá mais valor aos olhos do bom Deus que vê e permite tudo isso que nós também vemos e permitimos. Bendito seja o nome do Senhor.

Este ano teremos como no ano passado Paixão e morte do povo, com jejum, abstinência, fome e filas. A não ser que aconteçam episódios assimétricos, a eleição de novos prefeitos, por exemplo o que interromperá ou não a tragicomédia.

Circo já tivemos demais e continuamos tendo. O que falta é pão.

Ao que parece, tudo correrá como de costume, às mil maravilhas, a não ser que o espetáculo descambe para o burlesco, à revelia dos atores ou com a cumplicidade deles, o que não é uma solução.
E então todos nós que rimos muito menos, de uns tempos para cá, poderemos encolher os ombros e comentar com um tantinho de amargura:

— Sim senhor! Acontece cada uma na quaresma!...

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