Ruth Guimarães
Amanheci prisioneira. Grades contínuas de prata desciam e se emendavam pelas pontas brilhantes, tremiam no ar descolorido sempre. É sempre o mesmo frio? São outros? Eu sei? O vento enrola lianas argênteas nas folhas verdes e desenrola e sacode a ramada. Tudo cinzento e verde. Eu vejo bem a alegria da árvore que virou moça bonita em dia de namoro. Tem um gesto e uma cor e um brilho. E o meneio para lá e para cá, amada e feliz. Também ouço o sussurro desses amores, um cochicho muito ciciado, muito juntinho à concha enrolada das folhas.
Um burro friorento, numa carroça, tem arrepios longos, a modo de um súbito ondular que o percorre da crina ao espanador gasto do rabo. Sabei-me lá o que pensa este burro, se é que pensa, em que pecado deteve a lembrança, se num coice dado fora de hora, se no furto de uma alface num tabuleiro. Que estará pagando esse triste, feio, miserando burro, para estar na chuva assim? As crianças que passam correndo para a escola vão pela chuva, sem proteção, sem agasalho, mesmo assim dão gritinhos alegres. Festa a chuvinha molhando os cabelos, que festa! No entanto, lá dentro da sala de aula, com o professor dando frias conjugações de verbo e fazendo contas frias na lousa negra, toda riscada de branco, que frio! A roupinha fina cola no corpo, o pezinho está gelado embaixo da carteira e o barro gruda, produz rachaduras entre os dedos, esfria, dá tristeza, burrice, vontade de chorar. Quedê de aprender assim? A lavadeira também não tem guarda-chuva, vem de longe buscar a roupa, não poderá trazer na semana, nem ganhar por ora os minguados reais.
Faz uns anos, diz-se que caiu tromba d’água em Lorena, que caiu em Guaratinguetá, que em Itaquera morreu uma dona com uma criança no colo, na enxurrada. Que em Mogi das Cruzes uns mil filhos de Deus, que habitavam as margens do Tiête, tão risonhas ao sol!, ficaram ao deus-dará, dormindo no chão limpo do Mercado e em velhos prédios abandonados. E o jornal dava que a banana de exportação, pão e trabalho para tanta gente na baixada para o lado de Santos, ficou retida, apodrecendo, que as estradas não davam passagem. No entanto a essas mesmas horas e pelo mesmo motivo, deviam estar viçosas as hortas e os pomares. E a lavoura do arroz do Vale do Paraíba, como estava ridente, tão densa! tão bela! mar de tinta verde derramada! Tenho alguma coisa que ver com esses que não têm sapato, nem roupa de lã, nem licença de ficar em casa quando chove? Chuva, chuva de prata, chuva linda para se ver por trás da vidraça!
E a inundação do mercado grande, o celeiro da cidade, tanta coisa rodando na água barrenta, que sem se podia aproveitar, misturada que estava no arsênico de matar ratos, e à sujeira.
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