Ruth Guimarães
Aquela história da maçã é
a mais antiga do mundo.
A mais antiga, a mais
linda e a mais certa. Ela veio através das idades, sonho hebreu clarividente e
divinizado, e se erigiu em símbolo. Como a serpente em espiral dos tempos remotos,
significa a tentação e a queda, a dura lição aprendida pelo homem, o trabalho
como preço do resgate, que anula o erro e prepara o decaído para o regresso ao
céu de onde o expulsaram. O paraíso fica pertinho da cidade, a meia hora, se
tanto, num trenzinho que parece um brinquedo. Vemo-lo com olhos mortais, mal
passado o portão do Horto Florestal da Cantareira, controlado pelo Estado. Mas
este paraíso não tem maçãs nem serpentes, como o paraíso bíblico. Apenas algum
Adão, e alguma Eva, de vez em quando, aos domingos quase sempre, vêm sussurrar
segredos sob as frondes, nesses dias maravilhosos de verão claro e quente. Há
cisnes de pescoços recurvos e colos serenos, como ânforas gregas inimitáveis.
Há uns verticais de postal suíço e bosques de casuarina. Tudo afinal não passa
de um lago, uns verdes, iguapés sobre a água calma, cisnes pensativos, bambus
alegres, aves que junto ao lago pousam tranquilas, porque não sei o que as
previne de que o lugar é seguro.
Talvez nem seja lícito
chamar de viagem o trajeto que se faz num trem assinzinho, que o bom humor
popular, com uns vislumbres raros no paulistano de tirada irreverente, à
carioca, batizou de “caixa de fósforos”. Em verdade não passa disso. É de
bitolinha estreita, sessenta centímetros, balança que é um horror, e dizem as
más línguas que não podem sentar-se dois gordos de um lado só do vagão, que o
trem vira.
Descem e sobem
passageiros do tramway em movimento.
E quando alguém estranha a temeridade, o guarda-trem ergue o boné, coça a
cabeça e informa com a cara mais aborrecida do mundo:
- Isso não é nada. Tem um
camarada manquitola aí, que toma o trem em movimento todos os dias.
A gente que viaja é prosa
e expansiva. Fica-se sabendo num instante uma porção de coisas. Descobre-se que
as máquinas dos trenzinhos têm nomes. A mais nova, importada há pouco, polida,
cuidada, chama-se Gilda. Uma antiga, que resfolega e falha na subida, é Mula
Manca. A outra barulhenta, de apito forte, é a Escandalosa.
Foto de Botelho Netto |
Esse é brinquedo de gente
grande, com alguns retoques, umas poltronas de Petit Trianon de Maria
Antonieta. Fica bem, igualmente, atravessando as capoeiras e bufando à sombra
dos bambuais do caminho.
Em São Paulo está mais ou
menos generalizado o hábito salutar do weekend, pois os olhos se cansam da
paisagem cinzenta da cidade, pesada e hostil, formada pelos arranha-céus de
concreto armado, pelo asfalto, pela poluição e por umas raras palmeiras
imperiais acenando melancólicas no céu nublado.
Aos domingos, a Paulicéia
é vazia e quieta. Sair, por um dia que seja, da cidade, é melhor que ficar
horas nas filas dos cinemas e dos teatros do centro ou dos bairros, comprar
entradas sujeitas a espera, e respeitar o ar viciado das casas de diversão. E
ainda por cima levar um carregamento de pulgas de várias espécies. Por isso,
todos anseiam pela fuga.
Vai-se a Santos, à
Riviera, a Mairiporã, a Garulhos, ao Retiro do Jeca, onde há pamonha e milho
verde assado, aos subúrbios, às chácaras onde se descansa o olhar nas pereiras
e vinhedos, a São Roque e Atibaia, a Bertioga e a Cananéia. E vai-se também ao
Horto Florestal da Cantareira.
A extrema tensão da vida
moderna metropolitana condiciona essas fugas semanais.
Chegamos e é o céu. Não
só para homens, mas céu das Aves do Senhor e os lírios dos campos. Céu dos
gansos de bicos vermelhos e dos irerês de penas azuis. Céu dos tico-ticos, das
tesouras, dos canários cabeça-de-fogo. E céu do seu Chico, também, o
guarda-campestre, alinhado no seu uniforme amarelo, que gosta de dar informação
aos visitantes. Ele já contou que o Museu Florestal abre ao meio-dia, um
curioso museu onde há trabalhos de talha em madeira de lei, nacional, e árvores
petrificadas, e esculturas em raízes, com motivos indígenas, primitivos. Contou
que tudo aquilo lá (e estende o braço num gesto largo) é pau-brasil.
Porém já não se ouve bem
o que diz o guarda. Sua voz se mistura ao rumor da cascata que corre adiante,
despencando nas pedras. Tudo se esvaziou do sentido corriqueiro, adquiriu um
sentido secreto sensível somente aos poetas.
E então os poetas foram
chamados para que não se percam e jamais sejam inúteis os gestos serenos das
asas e das ramagens.
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