sexta-feira, 26 de abril de 2013

Paulistânia


Ruth Guimarães

Aquela história da maçã é a mais antiga do mundo.

A mais antiga, a mais linda e a mais certa. Ela veio através das idades, sonho hebreu clarividente e divinizado, e se erigiu em símbolo. Como a serpente em espiral dos tempos remotos, significa a tentação e a queda, a dura lição aprendida pelo homem, o trabalho como preço do resgate, que anula o erro e prepara o decaído para o regresso ao céu de onde o expulsaram. O paraíso fica pertinho da cidade, a meia hora, se tanto, num trenzinho que parece um brinquedo. Vemo-lo com olhos mortais, mal passado o portão do Horto Florestal da Cantareira, controlado pelo Estado. Mas este paraíso não tem maçãs nem serpentes, como o paraíso bíblico. Apenas algum Adão, e alguma Eva, de vez em quando, aos domingos quase sempre, vêm sussurrar segredos sob as frondes, nesses dias maravilhosos de verão claro e quente. Há cisnes de pescoços recurvos e colos serenos, como ânforas gregas inimitáveis. Há uns verticais de postal suíço e bosques de casuarina. Tudo afinal não passa de um lago, uns verdes, iguapés sobre a água calma, cisnes pensativos, bambus alegres, aves que junto ao lago pousam tranquilas, porque não sei o que as previne de que o lugar é seguro.

Talvez nem seja lícito chamar de viagem o trajeto que se faz num trem assinzinho, que o bom humor popular, com uns vislumbres raros no paulistano de tirada irreverente, à carioca, batizou de “caixa de fósforos”. Em verdade não passa disso. É de bitolinha estreita, sessenta centímetros, balança que é um horror, e dizem as más línguas que não podem sentar-se dois gordos de um lado só do vagão, que o trem vira.

Descem e sobem passageiros do tramway em movimento. E quando alguém estranha a temeridade, o guarda-trem ergue o boné, coça a cabeça e informa com a cara mais aborrecida do mundo:

- Isso não é nada. Tem um camarada manquitola aí, que toma o trem em movimento todos os dias.

A gente que viaja é prosa e expansiva. Fica-se sabendo num instante uma porção de coisas. Descobre-se que as máquinas dos trenzinhos têm nomes. A mais nova, importada há pouco, polida, cuidada, chama-se Gilda. Uma antiga, que resfolega e falha na subida, é Mula Manca. A outra barulhenta, de apito forte, é a Escandalosa.

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
Esse é brinquedo de gente grande, com alguns retoques, umas poltronas de Petit Trianon de Maria Antonieta. Fica bem, igualmente, atravessando as capoeiras e bufando à sombra dos bambuais do caminho.

Em São Paulo está mais ou menos generalizado o hábito salutar do weekend, pois os olhos se cansam da paisagem cinzenta da cidade, pesada e hostil, formada pelos arranha-céus de concreto armado, pelo asfalto, pela poluição e por umas raras palmeiras imperiais acenando melancólicas no céu nublado.

Aos domingos, a Paulicéia é vazia e quieta. Sair, por um dia que seja, da cidade, é melhor que ficar horas nas filas dos cinemas e dos teatros do centro ou dos bairros, comprar entradas sujeitas a espera, e respeitar o ar viciado das casas de diversão. E ainda por cima levar um carregamento de pulgas de várias espécies. Por isso, todos anseiam pela fuga.

Vai-se a Santos, à Riviera, a Mairiporã, a Garulhos, ao Retiro do Jeca, onde há pamonha e milho verde assado, aos subúrbios, às chácaras onde se descansa o olhar nas pereiras e vinhedos, a São Roque e Atibaia, a Bertioga e a Cananéia. E vai-se também ao Horto Florestal da Cantareira.

A extrema tensão da vida moderna metropolitana condiciona essas fugas semanais.

Chegamos e é o céu. Não só para homens, mas céu das Aves do Senhor e os lírios dos campos. Céu dos gansos de bicos vermelhos e dos irerês de penas azuis. Céu dos tico-ticos, das tesouras, dos canários cabeça-de-fogo. E céu do seu Chico, também, o guarda-campestre, alinhado no seu uniforme amarelo, que gosta de dar informação aos visitantes. Ele já contou que o Museu Florestal abre ao meio-dia, um curioso museu onde há trabalhos de talha em madeira de lei, nacional, e árvores petrificadas, e esculturas em raízes, com motivos indígenas, primitivos. Contou que tudo aquilo lá (e estende o braço num gesto largo) é pau-brasil.

Porém já não se ouve bem o que diz o guarda. Sua voz se mistura ao rumor da cascata que corre adiante, despencando nas pedras. Tudo se esvaziou do sentido corriqueiro, adquiriu um sentido secreto sensível somente aos poetas.

E então os poetas foram chamados para que não se percam e jamais sejam inúteis os gestos serenos das asas e das ramagens. 

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