sexta-feira, 26 de abril de 2013

De quanta terra um homem precisa


Ruth Guimarães

A gente liga a televisão (antes não ligasse) e assiste àquelas cenas do Pontal do Paranapanema e outras. E vai, descobre que, contra a Constituição (ora, a Constituição!), contra a Caridade, contra a Solidariedade, contra o direito do cidadão de não morrer de fome, há toda uma estrutura que impede o cidadão de trabalhar, isto é, que o impede de viver. E vemos os chamados invasores surgindo de novo dentro de uma espantosa faixa de exclusão, pedindo contas de nossa ignorância e incompetência, na parte que nos toca, que é de votar bem.

Por isso é que vou contar esta história, aliás recontar, que quem a recolheu foi Leon Tolstoi. Com ela, reporto-me ao que está acontecendo por aí, com os latifundiários, os que possuem tanto.

Era uma vez um homem dadivoso que quis repartir o seu com quem o merecesse. O problema que se lhe pôs foi como testar o merecimento dos candidatos. Como separar o previdente do ambicioso, o entusiasta do que será movido apenas pela ganância, o grato do desagradecido, o prudente do insensato. E foi o dadivoso, pediu ao senhor rei para sancionar uma lei nova que, em tese, se constituía de uma reforma agrária, em moldes bem extraordinários. Ele próprio explicou assim a um afoito candidato:
- Você pega a charrua e vai seguindo em frente, no rumo do sol, até a metade do caminho.
- Que metade? Que caminho? E a outra metade?
- A outra metade é a volta. Você tem que estar aqui, dentro da fazenda, da porteira pra cá, com o arado, quando o sol mergulhar no poente. A terra que ficou demarcada, na ida e na volta, será sua.
- Posso passar do meio-dia e voltar correndo. Como saberei onde é o meio das minhas possibilidades? Toda a terra que eu marcar será minha?
- Aonde chegar o sulco será a sua posse.
- E tenho que estar de volta...
_ Em cima da hora de se esconder o sol. Nem um minuto a mais. Você tem direito a apenas um dia de terra.
- E se me atrasar?
- Não se atreva! O carrasco da vila o enforcará.
Na madrugada, saiu o moço, tangendo os bois, a mão pousada na rabiça do arado, a relha afundando na terra. E lá se foi.
- Eia, boi. Vamos, boi! 
E vamos! E vamos! E vamos! O suor lhe escorria abundante, rosto abaixo e costas abaixo, a camisa se empapava contra o corpo. Atrás dele dançava alegremente e cantava a gente da terra. Lá ia o felizardo ganhar uma gleba.
Muitas horas depois, já ninguém mais dançava nem cantava.
- Chega, moço! – clamavam. – O senhor está cansado. Já obteve muito chão.
- É cedo! – gritava o moço. – A sombra ainda está em volta dos meus pés.
- Para trás! Não abuse da sorte!
E o moço:
- Eia, boi! Vamos, boi!

Os acompanhantes se calaram e retrocederam. O moço se viu sozinho em meio à pradaria e, de repente, deu-se conta de que a sombra se espichava para diante e o ar ia adquirindo uma tonalidade avermelhada de crepúsculo. Com um baque no coração, compreendeu que não se tratava mais de demarcar riqueza, mas da demarcação dos seus próprios anos, ou dias, ou minutos de vida. Virou depressa a biqueira do arado do lado do nascente, para onde teimosamente tinha dado as costas e chicoteou os animais.
- Vamos! Não há riqueza que pague o que estou a pique de perder!
Deus sabe se ele não deu tudo o que tinha, numa correria maluca para trás. Ainda faltava muito para chegar à fazenda, subitamente o sol mergulhou no ocaso, num vermelhão de labaredas e a escuridão desceu sobre a terra.
Se o moço morreu? Morreu enforcado na ganância, na avidez, no arrogante desdém pelos conselhos.
O velho que afinal fez o enterro, arrematou os comentários filosofando que afinal ficamos sabendo de quanta terra um homem precisa: de, exatamente, sete palmos. É coisa jamais solucionada, isto de posses e de posseiros. Quem tem a terra se agarra, quem não a tem faz de tudo para obtê-la.
Assunto antigo, de verdade. Em Roma, os irmãos Caio e Tibério Graco perderam a vida nessa luta.
O conhecimento de tais fatos da História não impediu que setenta intelectuais italianos aproveitassem a estada do presidente do Brasil em Roma (a Eterna) para lhe entregarem um abaixo-assinado. O que pediam eles, tão solenemente, quase no limiar do terceiro milênio, nesta era industrial, era da Teoria da Relatividade, da Bomba Agá, da Informática, da pesquisa nuclear, da conquista dos espaços siderais?
Que pediam eles? O mesmo que pediam há dois mil anos os políticos, filhos de Cornélia Graco: terra para todos os homens, sem o que não haverá vida neste mundo. Eles pediam nada mais nada menos que a Reforma Agrária, que, nestes brasis de calores do sub-trópico e de extensões continentais, tanto demora. De um lado, porque o rei não provê. Do outro lado, porque há quem quer mais do que merece. E o homem merece apenas o que é justo.

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