Ruth Guimarães
Corre, pelo sertão afora, a história contada e recontada do homem que saiu procurando a mula sua, extraviada, e pensou que a encontrou, enfreou-a e voltou para casa. Levou muita pancada de galho e levou muito arranhão de espinho rasga-beiço, mas subjugou a bicha, "que tem essa mula hoje que de costume é tão mansa?" Perguntava-se ele. Quebrou-lhe as forças com puxavantes e cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos. Deixou o animal amarrado no curral e só de manhã viu que tinha voltado para casa montado numa onça, por engano. Lá estão essas histórias nos livros de mentiras de Graciliano Ramos e de João Simões Lopes Neto.
Conta-se que em noites de lua cheia a onça deita no chão, com o focinho voltado para o astro dos namorados e chora. É ver uma criatura humana em transe de paixão. Ela se espoja na grama, ulula, mia, geme de amor recusado. A lua, no céu, impassível embrulha-se na neblina e nem se dá conta da criatura que, longe, sofre por ela.
Uma ocasião em Suzano, na grande São Paulo, aconteceu que uma onça fugiu de um circo. Nunca vi tamanho pavor numa população. Ninguém mais pôs os pés na rua, nem para comprar pão, com exceção dos moleques que não têm medo de nada. À tarde, apareceram não sei de onde uns cinqüenta cavalarianos, o que alvoroçou a molecada. "É hoje, é hoje, gente! A soldadesca vai caçar a onça!" Guiados por alguns suzanenses mais corajosos "ela foi vista aqui, foi ali, - entrou na mata - foi pra beira rio - entrou no calipá”... Eles foram.
Eucaliptos de segundo corte, plantação fechada, lá era escuro, mesmo em dia de sol quente. Os bravos milicianos bazofiaram que iam trazer a bruta viva, peada das quatro patas. Entraram no "calipá" que tinha bem uns cem quilômetros de área plantada e levaram exatamente cinco minutos marcados no relógio. Saíram muito lampeiros, a galope, agitando as armas. "Pode sossegar, gente boa. Lá não entrou onça nenhuma." E lá se foi a cavalaria. Missão cumprida.
Duas noites depois, o ônibus do Kodama quebrou, como de costume, e os estudantes e professores que moravam na comunidade Brasílio Machado Neto tiveram que pegar a estradinha de terra, no meio do mato, morro acima, a pé, não era noite de lua, mas de onze hora da noite, capim alto, muito cipó e arranha gato, invadindo o caminho, lá fomos nós. Não sei porquê fui lembrar da onça. Bem no começo da subida, dei o brado dos valentes: "Pessoal, vamos correr!"
Foi a piada do ano. Em meio de muita gargalhada, daquelas que acabam em ai! ai! ai!, um estudante mais gaiato gritou: "Professora, a senhora acha que corre mais do que onça?"
Onça inspira muito terror. O matuto se vinga do felino, seu algoz e também se vinga do próprio medo, contando histórias em que o inimigo leva a pior. É vingança, gente!
Nenhum comentário:
Postar um comentário