quarta-feira, 24 de abril de 2013

Os meninos

Ruth Guimarães

A primeira vez que vi o menino, vi o menino e o pássaro. Era manhã de sol muito, de cintilação demais no céu nítido, o céu impassível, o chão cheio de pedra. Milagre? Milagre nenhum. Trata-se apenas de um lugarejo poeirento, onde, sobre o cume dos montes, os penhascos se equilibram. Uns meninos vendem umbu, outros tartaruguinhas de carregar no bolso. Outro equilibra um macaquinho no dedo. E um tinha uma gaiola com um curió. Curió, dito avinhado, passarinho de nomeada, cantador, sendo o curió baiano mais cantador do que os outros.

Menino estava na feira, sentado no chão, amolgando com os dedos a comida, amassando-a com farinha, numa cuia. Na frente dele uma montanha de pimenta de cheiro, amarelinha como o sol derramado. E de outras cores, para além, na feira toda, pimenta que Deus dava, predominando a vermelha, parecia que rolavam labaredas por ali. Toneladas de pimenta.

Quem vai comer tanta pimenta? – admirou-se o homem, endireitando a máquina, no estojo de fino couro. – Você consegue vender tudo isso aí?

O menino apreciou primeiro o interpelante. Depois mirou especulativamente as montanhas de pimenta: vermelhas, amarelas, sol, chama.

- Nem num vai chegar, moço. Festa do Bonfim está aí...

E mais não disse, porque um caminhão de propaganda passava com um aparelhamento de som, lançando no ar um samba muito barulhento. E ele saiu naquele balanço, com mais uma porção de meninos, tanto menino! Gingando, dançando e rindo... ai o riso do menino baiano, de simpleza e inovência!

Na festa do Bonfim come-se pimenta um bocado, nos acarajés que se vendem noite e dia, fritos em fogareiros, em plena rua.

Aliás, come-se muito, de tudo. É uma comilança tão espantosa, que, ao me lembrar, ainda sinto o cheiro da noite baiana, impregnado do odor das frituras, do quente perfume das frutas passadas, do mel, das labaredas...

Bonfim é a sua festa. E é a festa do menino. Primeiro é a concentração de manhã, no cais Cairu, diante da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. A cidade cheira a maresia e a fruta quente. Já não se fala das angélicas de perfume doce, as flores aos montões, em todos os altares. Vai sair a procissão, ou não sei que nome lhe dê, procissão sem santo, sem andores, sem estandartes, sem filhas de Maria, sem padre, sem pálio dourado, sem cruz de prata, sem nada. Mas com caminhões ornamentados com folhagens, onde com o pé se bate o compasso do samba e onde se canta. Mas com os jegues enfeitados de fita, mais de cem, mais de duzentos, numa fila imensa, portando imagens. Vão de orelhas empinadas, solenes, parecem dar valor ao que carregam. Ostentam na testa penduricalhos de toda espécie, e estrelas, num colorido quente e variado, o que é por si só uma festa. Esses jegues de procissão (ou que outro nome se lhe dê), são muito especiais. Não puxam veículos como seus irmãos que trotam nas carroças. Não são montaria de ninguém. E que senão o menino para conduzi-los? E tudo, meu Deus, tão bonito! Com tanta bandeirola, tanto papel picado, palmas, bolas de soprar, flâmulas, cores fortes e nítidas, tudo tão cor-de-rosa, tão nacionalmente verde-amarelo, tão vermelho, tão cor-de-abóbora, tão verde-mato, tão roxo cor-de-batata roxa! Tudo isso para o menino.

Já tomou assento na primeira fila, em roupas de grande estilo, o Sr. Presidente do Sindicato dos Carroceiros de Salvador.

O menino é visto em Feira de Santana, aos magotes de seis, sete. Ali, seu instrumento de trabalho é o grande cesto de cipó-imbê, para carregar compras, na cabeça.

O menino de Feira de Santana não estará na procissão do Bonfim, que Feira é longe pra danar. Nem lhe faz falta essa festa, de uma vez por ano em janeiro, uma vez que a feira tem uma festa semanal de quatro dias, acontecida de sexta-feira até segunda. Estará dançando pelas ruas, ao som dos aparelhamentos de propaganda, num samba rasgado, vendendo água aos feirantes e ao pessoalão de fora. Num braço a moringa, caxixi do sertão, boa pra conservar a água fresca. Na mão um copo de vidro, um só, que a freguezia não é exigente em questão de higiene e nunca teve notícia de micróbio.

- Seis reais, três copos. Vai que é barato!

- Quero um só.

- É seis mesma coisa. Bebe três para aproveitar.

- A primeira vez que vi o menino, vi o menino e o pássaro.

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