Ruth Guimarães
(Dois dedos de prosa, 04set1999)
José Bento Monteiro Lobato assistiu na rua Barão de Itapetininga, na Brasiliense. Tinha sim um escritoriozinho no mezanino, ia para trás, onde recebia editados e editorandos, a longa procissão de candidatos a escritores. Comover Mestre Lobato não era tão fácil, seria necessário ser um Lima Barreto, nada menos. Outros entravam, saíam, tinham que mirar aqueles olhos sagazes, o sorriso sem descerrar os lábios, a fala irônica, aquele dizer não, sem dizer não, o sobrancelhudo inamovível como pedra.
Sim, ele assistia no mezanino da Brasiliense. Mas, se fôsseis os trocapernas das Barão, nas tarde amenas, talvez parásseis diante das vitrinas das livrarias que as há e muitas por ali. Uma, especialmente; chamava muito a atenção de todos. Os passantes se detinham meio surpresos, prestavam muita atenção, cutucavam-se uns aos outros os que estavam juntos, sorriam, riam mesmo alvoroçados, teciam comentários nem sempre abonadores, sacudiam a cabeça, aprovando, desaprovando, divertindo-se. Que acontecia nessas tardes bonitas, em plena rua Barão, numa vitrina de livros? O que jamais chama a atenção de nenhum passante apressado ou não.
Sim, era uma criatura na montra. Está vivo? É manequim? - perguntava-se. Nessa época não se usava truques publicitários.
Mas sim. Era mesmo Monteiro Lobato, sentado dentro da vitrina, rodeado de livros seus (ele era editado da Brasiliense) numa cadeira confortável, larga, com espaldar. Trajava calças cinzentas, paletó marrom, camisa branca de linho, com colarinho alto e abotoaduras, gravata, sapatos de verniz de bico fino, pernas cruzadas. Muito se comentava a respeito, nas rodinhas literárias, no Bom Giovani e no Franciscano, no clube dos engenheiros e no Terrace Itália. Não somente os passantes da Barão se arrepiavam de ver a figura do mestre, perfeitamente imóvel, raro piscando, parecia até mesmo uma estátua. Tão bem falante, no mezanino, aqui, diante do público, mantinha-se calado. Hirto e calado. Pernas cruzadas, recostado como um bom savoir faire. Como um treinado manequim de loja, dessas meninas que enfeitam em épocas especiais.
Ele não ria, nem sequer sorria. Nem sequer olhava. Algumas pessoas permaneciam diante dos vidros um bom tempo, para se certificarem de que não era um clone do escritor, nem alguma bem feita estátua, copiada da ilustre figura.
Entretanto, assim calado, ele estava a seu modo discutindo, que a propaganda é a alma do negócio, como acreditava, como praticava, como dizia alto e bom som, reafirmando que um livro é mercadoria tão boa de negócio e de métodos de impingi-la como o arroz, o sabão e a mortadela.
Ouvindo os comentários e cochichos diante dele na vitrina e tendo os comentaristas e críticos e cronistas, eu sei que ele sorria por dentro.
E o que diziam dele?
Vaidoso?Ridículo?Negociante?Cabotino?
Quando Pablo Neruda esteve no Brasil, Monteiro Lobato estava mais morto do que vivo. Neruda também, que tinha um câncer em estado avançado. A apresentação dos dois intelectuais de esquerda no Pacaembu foi um delírio, apesar de ser um tempo em que comunista comia criança, na avaliação do povo. A voz cavernosa e enrouquecida de Lobato mal foi entendida. Até agora ainda mal entendemos essa voz.
Amigos, ambos de esquerda, Lobato e Neruda pensavam do mesmo modo, em relação ao livro, como produto para divulgação.
Achavam os dois que livro deveria alcançar as classes mais populares, ser vendidos em supermercado, açougue, farmácia, nas praças, no chão, na pastelaria, nos tabuleiros. Livro era para ser visto, folheado. Bem ao contrário do pensamento da época, de que as pessoas que gostassem de livros iriam buscá-los nas livrarias. Lobato procurava desmistificar o livro como utopia da intelectualidade.
Diz ele: Livro não é para ficar no altar (leia-se prateleira de livraria, biblioteca) e nem para ser adquirido como supérfluo, quadro ou estatueta.
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