segunda-feira, 29 de abril de 2013

Os bilhetes ao senhor Doutor

Ruth Guimarães 

“Deu sarapo nele, já tava forte recaiu vez mar deu uma grosera nele com coisa que fosse sarapo outra vez e tose e febre tremor de frio dor nos olhos, dor nas costela e dor de imbigo.” 

Para decifrar esse patoá, só mesmo o médico a quem tal correspondência é destinada, o qual, se lê o seu Dostoiewski e ama os poetas, entende de dor na iarga (ilharga), dor no encontro, dor no sangrador e poderia escrever um tratado de medicina popular, se quisesse. Mas disso ele não cogita. 

Essa história dos bilhetinhos é coisa velha. Gente que tem cisma de comparecer ao consultório, na cidade, mas a quem a meizinha caseira não deu volta, escreve os sintomas e manda um próprio entregar a esse de que falo, misto de médico e de fazendeiro, que compreende como ninguém os problemas do matuto. Compreende e procura solucioná-los, sem o que a caipirada, arisca e desconfiada, ficaria entregue ao terreiro de uns e de outros por aí, à Maria Polidora, que assiste em Lorena, ao Sebastião Maria de Santa Rita, aos curandeiros de Canas, do Embauzinho, de Passa Quatro, de Vila Queimadas, fauna que cresce como cogumelo, por si, nessas devastadas pastagens em que houve por bem se converter o uberdoso Vale do Paraíba. 

Todos estão certos de que o doutor vai ler sem rir e sem chorar. Recostado na cadeira, com seus cândidos olhos azuis, depois de um momento longo, escreve a receita. E é bem possível que em vez da receita vá ele mesmo em pessoa, muito depressa, pois percebeu, no desalinhavado das frases que a doença é séria, que a morte espreita, que é talvez tarde demais. Abandona tudo e vai. Seu carro é visto em lugares inesperados, por essa morraria dos Ferreira, nos caminhos da Bocaina, nos pés de serra. Não é raro que volte trazendo algum mísero carregamento humano gemente, retirado sabei-me lá de que loca, e vá levá-lo à Santa Casa, onde a noite o encontra inquieto pelos corredores, figura barroca, enganosamente plácida, uma espécie de dr. Seixas de Érico Veríssimo, sem a rudeza que caracteriza o médico de “Olhai os lírios do campo”. 

Por via de tal existência, multiplicam-se as crianças que levam o seu nome. São filhos de gente agradecida. Ricos à cuja cabeceira velou, salvando vidas, ou miseráveis de quem não leva um tostão, e a quem, pelo contrário, entrega ainda por cima, muito canhestramente, largando-os à pressa sobre a mesa tosca, os medicamentos e parte da alimentação mais adequada ao doente. 

Aí está o homem. 

E a terra? Ah! A terra perdida, de pastos e de carrascais, sem nenhuma cultura, sem nenhuma esperança, onde o Jeca Tatu, na pior acepção lobatiana, constrói os seus casebres à feição dos cupins, achatados contra o pasto. Por extensões infinitas, não se vê uma árvore nem uma planta, nem um pé de café, esturricado. É cupim e sapé, rabo de burro. É barba-de-bode e cupim. Na mais desmazelada das vidas, na mais dolorida das misérias, aqui fica o caipira, entregue ao precário das iniciativas particulares, para uma precária melhoria. É essa gente dessa terra na zona rural, que envia ao médico da sua confiança, fino e calado, bilhetes como este: 

Amigo e senhor doutor Daves 

Çaudação. 

doutor pesso uma conçurta, muito falta de ar muita febre, muita toce muito vento no instambo até água que para no instambo teno como intogica fastio e um batimento de coração que sai pela boca, no repente, parai quase me mata aspe desinxo o rosto esta inxado eu quero vim aqui mas mais não esto podendo viaja tomei a conçurta paçada tudo pedido do seu amigo obro. Cr. o José de F. Fialho. 

A tradução é a seguinte: 

Amigo e Sr.Dr,Darvin, saudação. 

Doutor, peço uma consulta, pois tenho muita canseira, muita falta de ar, febre, e tosse, muito vento no estômago e até água me intoxica e me dá vômitos. Também tenho fastio e batimento exagerado de coração, que quer me sair pela boca. No repente pára e aí quase me mata. O rosto desinchou mas está inchado outra vez. Quer ir ao consultório mas não estou podendo viajar. Tomei os remédios da semana passada. Seu amigo, cridado, obrigado. 

Um que tinha hipossisstolia queixa-se assim: 

Benedito Ventura – volto os incomodo do mesmo jeito, volta as inxões nas pernas e no estamo e dói o istamo e vento preso e oes remédios que ele está tomando não está fazendo proveito. 

Certa mãe escreve a respeito da filhinha: 

Maria Aparecida – ela acordou sem fala e batendo do lado direito, zolho, boca braço e pé batendo do lado direito desde 10 horas da noite até as 9 horas da manhã não tinha voltado do ataque 7 de idade. Mãe Joana de Jesus. 

Uma outra mãe ansiosa pede ingenuamente: ”Mando pedir ao senhor fazer um exame direito nessa criança. Conta que ela estava no carrinho e caiu. Não sei se massucou que o menino não dá mais sossego.” Adianta que o leite é só cair no estômago e voltar. “Para estar bem está tomando água sem sensar.” E conclui informando que ela está com oito meses “mas não sei se será o dentes ou bichas.” Mas a doença resultou em pielite. 

Outra doente, com hiperemesis gravídica enumera os padecimentos: crescimento e dor no estômago, tenho moita anciãs inceou (iniciou) aroto (arroto) farta diar (falta de ar), tuntura (tontura), tenhora (tem hora) quimidá (que me dá) um sono forte moito ruim ahora (agora) eutomo café pra não ficar senada. Mais não tenho apetite nem um fais 90 dias que ando acim. Isto é: O que não agüento são náuseas em secoarroto, falta de ar, tonturas, sono pesado/gosto ruim na boca. Tomo só café forte pra não ficar sem nada. De resto, não tenho apetite. Faz 20 dias que ando assim 

Nem sempre se dá o caso de estar o enfermo impossibilitado de comparecer ao consultório. Certa vez, durante o interrogatório que se seguiu à entrega do bilhete, o médico descobriu que o portador era o próprio doente. Havia escrito o bilhete e foi entregar em mãos. De onde se vê que o nosso povo é muito inclinado à literatura.

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