Ruth Guimarães
Minha mãe era uma boa alma.
A mais antiga das minhas lembranças a respeito de um tal seu Clementino, servente do Grupo Escolar o traz de volta ao olhar da memória, batendo os tamancos na chamada rua da Ponte, aliás rua de Cima, nome certo era Silva Caldas (Silva, não Sílvio). Vinha pela rua muito franzino e curvo, branquinho, engelhado, com seu parelho de brim de cinza gasto, desbotado o paletó subindinho nas costas, corcunda que seu Clementino era.
O sol era quente, tremia o ar, as árvores se abochornavam, cansadas, havia um lento ensimesmar por toda a várzea. Rua de Cima era quente, negra, modorrenta. Seu Clementino vinha de tamancos, pleque-pleque, era um custo andar todo aquele pedaço. Todos os dias. Tinha a fala mansa. Tinha um riso malestarento, de boca entreaberta, suplicante, deixava a gente com vontade de chorar e meio com raiva dele. Tinha um modo de dizer “sim-senhor” (“Não-senhor” não falava). Dava vontade de sair de perto. Não adiantava rir dele. Os olhos eram castanhos. Às vezes o beiço tremia. As mãos se fechavam na terra, quando lidava no jardim, onde conseguia as rosas mais belas do mundo. As mãos sofriam no espinho e na terra preta. Capaz que seu Clementino guardasse raiva! Criança enquadrava a cabeça dele na mira do estilingue, cada bocada de tirar faísca da orelha. E quando um desses meninos se machucava, ele o ia levar em casa. Mansinho, tamanco batendo, riso (aquele) no canto da boca, nem contava o que a gente havia feito.
Uma vez foi me levar. Caí do muro. Outra vez foi porque rolei da escada.
Minha mãe, que era uma boa alma, ficou querendo bem o velhinho insosso, sofredor. São Clementino. Às vezes mandava pra ele um tijolão de goiabada cascão, feito em casa, às vezes alguma roupa.
Um dia ele deixou de passar na rua de Cima. Povo falando: doença de noventa dias de licença, estava mal mesmo, capaz que fosse morrer. Morreu. Sino chorou sentido, minha mãe rezou por ele, creio que enxugou alguma lágrima, pois tinha o choro fácil e silencioso. Dois dias depois, soube que quem morreu foi um Emboavas, de Vila dos Macacos, na serra. Fazendeirão, dono de léguas e léguas de terra. Que seu Clementino nenhum! Que sino chorou por ele, nenhum! Seu Clementino era lá gente rica pra enterrar com música de sino? Mas na outra semana, correu rumor que seu Clementino falecera durante a noite, na Santa Casa. Minha mãe, boa alma, rezou mais um pouco, desta vez sem lágrimas. Coitadinho! Deus o tenha em bom lugar! Mas aconteceu que seu Clementino, insensível a tanta reza bem intencionada, bem no outro dia inventou de passar pela rua de Cima, com seus tamancos, seu paletozinho malfeito, sua carinha de maracujá de gaveta. Passados mais uns dias, Turíbia apareceu e falou: Sabe quem morreu hoje? Seu Clementino. Aí minha mãe disparou: Morreu, morreu. Que enterrem. Morreu hoje, amanhã são dois dias. Velho enjoado, que está só morrendo. Cansei de rezar por ele!
Mas seu Clementino não voltou a passar pela rua de Cima. Dessa vez, tinha morrido de verdade.
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