segunda-feira, 29 de abril de 2013

O reinado de Anteros

Ruth Guimarães 

Anteros, filho de Afrodite e de Ares. Ao contrário do deus Eros, que promovia a simpatia entre os seres, provoca a antipatia, a aversão. Tem todos os atributos opostos aos de Eros. É como ele forte, sadio, poderoso, mas Eros une e Anteros desune. 

Cabe a Anteros impedir que se confundam os seres da natureza dessemelhante. Semeia ao redor de si a discórdia e o ódio. Prejudica a afinidade dos elementos. Entretanto, impede que cada um saia dos limites marcados pela natureza e que tudo retorne ao Caos, anterior à criação, no tempo em que a ordem não tinha ainda sido imposta aos mundos recém-criados. 

A maioria dos brancos não cultiva o ódio, nem pratica a violência, diz John W. Gardner, americano do norte que foi ministro da Saúde, Educação e Assistência na sua terra. Nem, tampouco, a maioria dos negros. Embora, evidentemente, nas duas etnias haja aqueles radicais que odeiam e que agem destruindo e matando. E porque isto acontece, há uma espiral crescente de medo recíproco e de perigosa hostilidade entre as comunidades diferentes entre si. Além do mais, elas têm um passado carregado de ódio. De opressão e tirania de uma parte. De dor e ressentimento pela outra. De medo de todos os lados. 

Diz Gardner que houve uma curiosa mudança entre os dois oponentes. O ódio dos negros é expresso abertamente, defendido, comentado, exibido, como uma bandeira. O ódio dos brancos tornou-se clandestino. Não se mostra abertamente. A sociedade ainda exclui os negros dos bairros brancos, fecha-lhes oportunidades de emprego e de ascensão social, ofende-os no seu amor-próprio, procura diminuir-lhe a confiança, assim como lhes diminui as chances de uma vida mais digna. 

Entretanto, as vantagens obtidas foram devidas a campanhas não-violentas, como as da vida pública inicial de Martin Luther King. Por exemplo: condições de voto, desagregação das escolas do Sul, e nos restaurantes e hotéis, e as oportunidades de emprego. Os violentos não conseguem harmonizar os dois grupos, e os relacionamentos cada vez se deterioram mais e a distância entre eles se torna infinita e irremediável. E os moderados? Que fazem os moderados? Por que não são ativistas, dentro da moderação, e não pregam a cordialidade, não contribuem para a destruição do preconceito, feito de medo, de vergonha, de desespero, de ódio? Quem peca mais? O violento que, possivelmente errado, luta, ou o cúmplice acomodado de um estado de coisas que representa a falência da humanidade? 

Modernamente deu-se no Brasil um fenômeno inquietante. O desprezo, ou ódio, ou medo, seja lá o que for contra o negro, mudou sutil. Não se declara mais abertamente. Por trás do sorriso conciliatório, das declarações na mídia, das relações em público, da suposta benevolência, há um recrudescimento do antagonismo. Quem assistir aos programas de TV, folhear as nossas revistas, indagará: 

- Ora, ora! Não é o Brasil um país negro? Não entraram aqui dez milhões de africanos? Onde estão eles? 

O assassinato de Martin Luther King, Jr., o líder negro americano, criou um perigoso vácuo na comunidade negra. Os negros pobres não aceitavam outro líder. Até que, logo depois, surgiu Whitney M. Young, Jr., considerado o mais eficiente advogado das causas dos negros dos Estados Unidos. Aludindo ao Poder Negro, diz Whitney: “Há gente demais que acredita que podemos abrir caminho para o poder a gritos ou a tiros. Quero assegurar que os verdadeiros inimigos dos negros ficaram muito satisfeitos com esse procedimento que justifica uma repressão mais forte.” 

Diz ele que na luta pelo negro e pelo Poder Negro a questão econômica é fundamental: 

- O poder do dinheiro é importante para o negro – diz ele. – É claro que sentimos orgulho e nos portamos com dignidade, quando, vasculhando o bolso, encontramos dinheiro em vez de buraco. 

Uma espantosa contenda racial formou-se na Rodésia, sul da África, com ameaça de envolver o Ocidente versus todas as potências comunistas, isto é, a extinta União Soviética e a China. Disseram os rodesianos brancos que estavam dispostos a dividir o poder com os africanos negros, desde que esses negros deixassem de lado a vida tribal primitiva. E responderam os negros: 

“Este país é Zimbabwe, nome de uma antiga e adiantada civilização africana. Rodésia homenageia a memória de Cecil Rhodes, construtor de impérios do século XIX , que enganou nossos chefes, roubou nossa terra e nos impôs uma ditadura racista. Nós mudaremos o nome de nossa terra para o antigo Zimbabwe. Boicotamos as eleições: sistema arranjado, não para nos conferir direitos civis, mas para evitar que cheguemos um dia a exercer papel significativo na nossa pátria.” 

No Congo, as perturbações derivaram do fato de que os belgas nunca instruíram os colonos congueses e não os prepararam para se governarem a si mesmos. 

É fato evidente que a democracia falhou na África porque a sua gente não estava preparada para ela. 

Exatamente o que aconteceu no Brasil. As famílias negras, postas sem preparo algum no olho da rua, pode-se dizer, sem a tutela com a qual estavam acostumadas, afundaram numa lamentável falta de iniciativa, ineficientes para se governarem. O marasmo, a falta de perspectivas, de estímulos, de objetivos, transformaram a comunidade num ajuntamento amorfo sem ânimo para viver bem e sem uma alavanca para o progresso. 

É um povo que cada vez afunda mais e espera de fora, justamente dos seus opositores brancos, um aceno, uma ajuda para sair do atoleiro, ajuda que certamente não virá. Então o que lhe resta? Incorporar-se ao branco, na forma antiga de clientela, ou branquear, anulando-se na miscigenação.

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