segunda-feira, 29 de abril de 2013

O precursor

Ruth Guimarães 

Se tivéssemos de traçar o nosso perfil nacional, brasilíndio ou brasilafro, não em termos sociológicos, o que já foi feito, mas em termos de reflexão direta, folclórica, humana, em termos de reflexão popular, pra todo o mundo dizer: É mesmo, gente” – iríamos encontrar em muitos filhos desta mãe gentil uma grande vergonha de ser brasileiro. Daí decorrem declarações como esta. “Não gosto de música sertaneja”. Não é a que vem do sertão, mas aqui em São Paulo, tínhamos Raul Torres, Serrinha e outros, com aquelas tragédias inesquecíveis do caipira. O que quer dizer: essa toada melancólica, dolente, essa coisa brasileira de música safadinha, de valsas safadinhas, de canções do tempo da minha avó. Desmentindo essa generalidade de que ninguém gosta de música sertaneja, aí estão, muito bem instalados na fama, Xitãozinho e Xororó, Zé de Camargo e Luciano, Bruno e Marrone, Daniel, Leonardo, Milionário e Zé Rico e muitos outros que jamais passam da moda. 

Romaria, de Renato Teixeira está aí, sem nenhum colapso. Boldrin está sempre no coração do povo. 

Ninguém gosta de música caipira. Então, quem compra os CDs e DVDs da vida? 

Ultimamente, dobrou, triplicou, decuplicou a ida de brasileiros para fora. Por medo, vergonha, ambição, vaidade, projeção social, desencanto, porque não me ufano do meu país. 

Qual a necessidade desses brasileiros fugirem de nossa situação de emergentes, sem vontade nenhuma de subir? Por que esse indício claro de rejeição. Ou de reprovação. Mas porque não ficam aqui para ajudarem a endireitar essa joça? 

No entanto é evidente o nosso apoio servil, nosso agrado, nossa aquiescência a quaisquer costumes estrangeiros, e o sim-senhor a qualquer estrangeirice. E que dizer da nossa bronca contra o português, hoje nosso irmão, antigamente nosso avô, a quem imputamos todos os nossos fracassos? As ofensas são verbais, contamos piadas ofensivas. E não é raro ouvir-se: “Tivéssemos sido colonizados pelos ingleses, ou franceses, ou holandeses, a nossa história seria outra...” e seria melhor? 

Houve há algum tempo uma demonstração de danças de diversos países no Ibirapuera, no pavilhão da Bienal. Os vários povos que vieram integrar o nosso povo, o português como ocupante, os imigrantes italianos, espanhóis, eslavos, judeus, árabes de várias denominações, todos apresentaram danças folclóricas do seu país de origem, o mais fielmente possível, com roupas típicas, camponesas, de que se orgulhavam. Chegou a vez do Brasil e em vez das danças típicas, que temos e belas, apareceu um bailado, mal ensaiado, pseudo afro, coisa que o povão nunca viu, que não existe vivo em lugar nenhum entre nós. Se se queria simbolizar a dança negra, como representação de um Brasil autêntico, por que não o jongo? Por que não um pesquisa correta, fiel, de congadas e moçambiques? 

Diante de tudo isso, chegamos à conclusão de que, como no velho conto, estamos vendendo a nossa alma a não sei que demônios e talvez tenhamos de descer ao inferno para resgatá-la. 

Mas nesse assunto, nem tudo são espinhos. Uma larga faixa dos nossos literatos, muito geniais, voltaram-se do pré-modernismo em diante, para a nossa português, casta linguagem, grande passo, pois nos deram o nosso falar brasileiro. Sem este, o que seríamos nós? 

E uma vez que falamos de resgate, falemos de Valdomiro Silveira, pelo que representa em favor de nossa linguagem. 

Bernardo Elis, num estudo, no pórtico de “O mundo caboclo de Valdomiro Silveira” fala da humildade com que o autor trabalha a sua obra. “Pertinaz, humilde e paciente”, diz ele. “Valdomiro optou pelo caminho mais áspero, que só um temperamento portador de desambição caipira podia tomar. “Utilizou o espírito da linguagem dialetal, de uma forma homogênea e global, não só quando falam as personagens regionais, mas quando a narrativa é feita pelo próprio escritor. Seus contos, pela estrutura, pelo ritmo, pelo tipo de construção frasal, pelas palavras, pela expressão, espírito e estilo, são elaborados e construídos com observância cuidadosa de estrutura de pensamento na sua cultura do homem-regional-rural, ou seja, do caipira.” 

Eu só quero discordar da humildade. Assim será, se lhes parece, e se também parece ao Bernardo Elis. Quanto a mim, não qualificaria de humildade, o que, no Modernismo, e um bom tempo depois, foi chamado de renovação, de audácia, de coragem e de brasilidade. A mesma visão de Brasil e a mesma atitude de desassombro de Mário de Andrade, mereceu outros adjetivos. Comparações literárias à parte. 

Já pensaram na sociedade da época? Nas tertúlias? Nas academias? Nas igrejinhas? Nos príncipes dos poetas? Letras para a elite, somente, francesismo, a nossa português casta linguagem, a flor do Lácio, inculta e bela, torneios de frases cheias de arabescos (excetuando-se o Mestre Machado), vocabulário precioso, punhos de renda, gravata e café Colombo... 

E lá vem aquele caipira, com sua fala de ralé. Um, do Vale do Paraíba... 

Dele, um que sabia e afirmava de si mesmo, dizia: 

“Se não fosse Valdomiro Silveira, não existiria Guimarães Rosa.”

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