segunda-feira, 29 de abril de 2013

O nosso Big Ben

Ruth Guimarães 

O relógio da Luz marcou por muitos e muitos anos a vida dos paulistanos. E foi personagem da nossa vida, tão fulgurante e expressivo, que praticamente o destruiu como imagem, como ícone, e tanto que a partir daí ele abandonou em definitivo o país da fantasia. Passamos a ignorá-lo. E isso fazemos nós os iconoclastas que tanto e tão amargamente o odiamos antes, e o amávamos entretanto em definitivo, de um modo intenso, sem saber. 

Isto já faz muito tempo. E que fazíamos nós, jornalistas, altas noites, na praça da Luz, quando a torre pegou fogo? Andávamos em busca de matéria para a primeira página. Matéria de primeira página. Hoje isso não seria problema. Aí temos a Dutra. E para a primeira página não faltam também retratos de mulher sensualmente nua ou os últimos instantâneos do Lula discursando. Nós, jornalistas, devíamos preencher os 7,5 cm que faltavam na primeira página; que a pessoa encarregada de formatar, diagramar, sei lá como se chamava na época, vinha com a reguinha, marcando quanto faltava. E tínhamos que achar matéria de primeira página! 

Pois a torre pegou fogo e destruíam qualquer coisa na paisagem, na coerência da paisagem urbana, aqueles quatro círculos azuis da torre grande abertos dentro do céu. Tinham assim, desolados uma tristeza quase urbana de órbitas vazias. 

Cada um de nós era um pouco dono dele. E cada um de nós era um pouco seu escravo, pois milhares de milhares de pares de olhos ansiosos o consultavam cada dia, e acertavam por ele, cada dia, algum mísero cebolão de bolso, ou de algum magnífico Pateck suíço, de quinze rubis, com o nome gravado na tampa de ouro. 

Cotidianamente era assim: 

Passar fora de horário no ônibus Oriente, ou no bonde Bresser, pela Luz, vindo de todos os pontos do oeste da cidade, para o Largo de São Bento, e ouvir as doze badaladas do meio-dia – adeus ponto, na repartição! era esmagador. HORA OFICIAL! Era o mesmo que levar as doze pancadas na cabeça em lugar de simplesmente ouvi-las. O desaponto, a ansiedade, o medo dos atrasados, se transformavam unicamente em cólera desarrazoada contra o relógio. E tinha-se um absurdo desejo de que desse “a louca” nele e ele desandasse dez minutos. Oh! dez simples minutinhos, apenas por favor! Dez minutinhos... Assim aliciante e tremulamente, diminuindo tanto o milagre que ele parecia qualquer coisa de cotidiano e admissível. Como se houvesse por aí relógios – mesmo o da antiga Estação do Norte, desmoralizado e atrasado, quando não parava de uma vez, preguiçoso como um funcionário da antiga escola, - que tivessem o topete de andar para trás. 

Nessas horas, sim, é que seria delicioso levantar os olhos e encontrá-lo em chamas. Incendiá-lo num meio-dia de paixão e de pressa, teria a atenuante que tem um crime passional; mas assim como aconteceu foi absurdo. A destruição chegou na calada da noite, com pés de veludo e de sombras, e irrompeu subitamente envolta em labaredas enormes que lamberam o céu. Traição! 

Todos os notívagos se reuniram ali, atraídos pelo impressionante clarão, como falenas. Vieram poetas. Vieram jornalistas, não os que estavam em serviço, mas alguns outros, depois do período de seis à meia-noite nas Folhas ou no Jornal de Notícias. Estava lá Hélio Pompeu, carrancudo como sempre e esboçando não sei que tormentosas realizações interiores. O Nazário me dizia(e enquanto falava, via-se o fogo dançando nos seus olhos felinos) 

- Horroroso, mas que magnífico espetáculo! 

Pena que seja feio chorar por um simples relógio. Mesmo que seja esse, com uma bela folha de serviço, de funcionário militar. Um amanuense Belmiro sem problemas, - inteiriço e disciplinado, com direito a duas licenças-prêmio, de seis meses cada, por assiduidade e merecimento. Pena que não se possa chorá-lo, como uma espécie de reparação, por tê-lo odiado muitas vezes. Esse rígido ditador do tempo. 

Para nos consolarmos poderíamos dizer que teve um fim belo e glorioso, o fim que todos os grandes homens gostariam de ter: magnífico canto de cisne, entre chamas, extinguindo-se antes de caducar. E é para contar do seu canto de cisne, que tudo isto afinal está sendo escrito. 

Deixemos de lado a sentimental tendência a esquecer que a hora é uma instituição antinatural, aceita com tão boa vontade como é aceita a morte. E não podemos esquecer também que uma fauna inteira de homenzinhos secos tinha o relógio sempre impertinentemente certo pelo da Luz. 

Não há porquê lamentá-lo. Já passou à lenda, que é o menos ingrato de todos os panteons. Disseram que ele trabalhou durante vinte e cinco anos sem precisar de conserto, sem parar e sem atrasar, e isso demonstra que o paulista não é tão falto de imaginação assim, como queria Sérgio Milliet. 

Um relógio lá está, outra vez. Poderemos dizer que continua lá na torre também refeita. Sem magia nenhuma, sem influência nenhuma. O relógio foi substituído, tem um escravo que faz a revisão todas as semanas. É elétrico, perfeito, certo. Virou funcionário público. Não tem lenda. Ninguém o odeia. 

Que a terra seja leve àquele que caiu na madrugada vermelha.

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