segunda-feira, 29 de abril de 2013

O culto ao fogo

Ruth Guimarães 

Uruçuí é um povoado de 5.000 habitantes, às margens do rio Parnaíba, no Piauí, divisa com o Maranhão. Ali a vida ainda segue um ritmo lento, é quase primitiva, com o aproveitamento de elementos naturais. Por exemplo, na feitura do calçado, um corta o couro, para fazer as sandálias, couro do animal que ainda há pouco berrou no terreiro. Uma tece o fio no tear, que há milênios era assim mesmo. Um jumento pensativo, atrás da casa, espera para fazer a longa viagem (até o Egito). 

A loja mais próxima, que tem de tudo, fica a cem quilômetros. Os encourados aparecem nos cavalos, com apeios caprichados. Numa casinha de esquina um alfaiate trabalha o couro. Faz perneiras, luvas, gibão, botas, calças, tudo. Veste os homens dos pés à cabeça e depois faz o mesmo ao cavalo, isto é, veste as partes que devem ser vestidas, com arreios bem feitos, selas, cangalha, bridão, peitorais e tutti quanti. 

Em dezembro e janeiro acontecem as formosas encenações dos pastoris, com as meninazinhas de cor-de-rosa, cabelos compridos e camisola pobrinha, tão comoventes, quanto seria os anjos de verdade. 

Lá, há um ginásio cheinho e uma cadeia vazia. Nem um preso. A meninada corre para ver os chegantes estranhos. São sorridentes, falantes, animados, esses meninos sem horizontes. O Projeto Rondon esteve lá. Ensinou alguns elementos de higiene e outras coisas. Não os ensinou a serem mansos de coração, como Um na Judéia já o fez, porque os uruçuianos já têm o coração doce e bom. Não foram encontrados carros, nem esgotos, nem magazines, nem luxo, nem maus costumes. Nada da nossa celebrada civilização. Minto, havia lá, da civilização, a luz elétrica. 

E então chegou o dia 2 de fevereiro, em que no calendário popular se festeja Nossa Senhora das Candeias. É dia em que todos os lugares ricos de costumes de antanho, se desmancha o presépio rústico, feito ao canto da sala. Ali está a Sagrada Família, ali estão o Boi, o Burro, o Carneiro, os Pastores, os reis Magos, e mil coisas miúdas, para enfeite. 

Em qualquer lugar do mundo, dia de desmanchar o presépio é dia de desmanchar o presépio. Vão as figurinhas de barro e as lampadazinhas coloridas para as caixas e as gavetas e até o ano que vem. 

No Uruçuí não é assim não. 

Vai anoitecer em breve, a penumbra que se espessa tem laivos de púrpura. (Esses longos crepúsculos brasileiros) A cidade vai se mergulhando nas sombras, aos poucos já não se distinguem as feições dos passantes. As casas mergulham numa escuridão total, já é noite e o negrume nos inquieta. Por quê não acendem essas luzes? E o luar? Que fazia o luar? Então, surgindo de dentro das trevas, o milagre de repente aconteceu. Chamas miúdas se erguem daqui e dali, e mais e mais. O vento sopra um pouco, com muito cuidado, e logo, numa irriquieta sarabanda, cem, milhares de estrelas surgem e iluminam a cidade inteira. Lamparinas e velas estão acesas em todas as janelas e portais. E então todas as estrelas do céu se mudam para a terra. Que será isso. Ah! É o dia de Nossa Senhora das Candeias e todos os mortais acendem o fogo capaz de iluminar, de congraçar. E de deixar tão bela essa cidade que mudou de lugar as constelações e as trouxe para a terra, pertinho de nós. 

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