domingo, 28 de abril de 2013

O Avinhado

Ruth Guimarães 

Quando um pobre homem se casa perde para sempre a independência, a oportunidade de mandar no que é seu, e de estar sozinho. A mulher arruma-lhe as gavetas, mexe-lhe nos bolsos, invade-lhe o quarto e a intimidade, atende-lhe aos telefonemas. Quer mandar até nos pensamentos, pois arenga continuamente: “não pense que...”. Mas há uma propriedade em que a mulher não invade: o carro. Por isso mesmo é que se vêem aos domingos os orgulhosos proprietários desses carrinhos polindo-os e alisando-os, enquanto os macarrões esfriam e na cozinha anda uma lida dos pescados. É ver-lhes a cara iluminada de felicidade para saber quanto vale e o que significa um carro. É-lhes casa, refúgio, asilo. Pasárgada. 

Embora todos necessitem da inestimável liberdade, nem todos podem comprar um automóvel. Mais que comprar, sustentá-lo. Então, a um dá-lhe na veneta pescar na represa do Rio Grande, ou em Guararema. Vai pescar. Peixe não traz nenhum, que seu objetivo não é esse. A outro, acode-lhe o recurso de ir ver todas as partidas de futebol, do seu time e de outros, campeonatos e festivais. A outros, acontece-lhes uma súbita paixão por estudos de botânica ou de minerais, são de colecionar borboletas ou aranhas, ou selos ou livros velhos, e torna-se-lhes absolutamente necessário andar à cata de aranhas e de borboletas, ou seja lá o que for, fora de casa. 

Meu compadre Orlando Braga coleciona passarinhos. Não só os caça, compra, troca, como os conserva em bonitas gaiolas. E daí que é preciso tratar deles, limpar os cochos e bebedouros, as tigelinhas e os puleiros, cozinhar os ovos que eles comem, escolher a folha mais tenra da alface mais verde, procurar alpiste novo, arranjar frutas da predileção deles (às vezes não é tempo) e tudo isso toma dilatadas horas. É preciso vigiar e avisar, para que ninguém mexa nos seus pupilos. Ele fica esquecidamente em silêncio, de cabeça baixa, lidando com as avezinhas, ou apenas olhando-as. 

Passarinho preferido seu era um avinhado, diz que nome certo é curió. Mal que ele punha os pés pra dentro de casa, a ave, conhecendo os passos ou a presença, desandava a cantar. “Canta, negro!” dizia o meu compadre Orlando, coçando-lhe a cabecinha redonda, quando a ave se quedava silenciosa, como que pensativa. E o avinhado cantava. Outros tentaram a mágica, em vão. O pássaro conhecia e atendia só a voz do dono. 

E foi um dia, roubaram o curió. Naturalmente, meu compadre logo arranjou outro, comprou, trocou, ganhou, que sei eu? Garantiram que esse novo era inteligente, dócil, que atendia com muita graça, que aprendia. E tudo era verdade. Aprendia até com mais facilidade. Com que gentileza erguia a cabecinha redonda! E espiava de banda, parecia que mais atento! Prestava atenção em tudo e em todos. Não estranhava. Com muita graça erguia a cabecinha redonda, quando alguém o acarinhava. A mulher e a sogra do meu compadre ficaram encantados com o bichinho. Elas mandavam, o avinhado cantava. Elas mexiam com ele, o danadinho arrufava as penas, todo assanhado. Coçavam-lhe a cabecinha, ele fazia um rumor no fundo da garganta, como quem estava gostando. 

Meu compadre olhava de longe, desconfiado, sumamente desgostoso com tanta gatimonha. Quem disse que ele se achegava para fazer festa no pássaro? Acabaram por perguntar-lhe por que não se agradava de pássaro tão gentil. E ele: 

- É... Mas o outro cantava só para mim..

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