domingo, 28 de abril de 2013

O boi de joelhos

Ruth Guimarães 

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
Cachoeira tinha um senhor carnaval de rua, animado, pulado, suado, dançado, carnaval para ninguém botar defeito. Explica-se: houve tempo em que Cachoeira era mais carioca que paulista. Aqui as pessoas liam os jornais do Rio, torciam para o Flamengo e o Fluminense e iam fazer compras no Rio de Janeiro. Menina bonita desta cidade casava-se com os engenheiros da terra de Mem de Sá. 

Por quê? Porque a estrada de Ferro Central do Brasil, que era o tecido vascular do transporte inter-cidades, tinha como ponto de troca de tripulação que vinha do Rio essa imensa, colossal Estação, que aí está, desafiando as providências de quem quiser impedir que ela caia. Os ferroviários cariocas vinham com os trens do Rio e ficavam nesta cidade. Aqui namoravam, aqui constituíam família. Famílias papa-goiabas, dos subúrbios do Rio; e muita juventude também vinha para cá, para empregos e passeios. E como bom carioca, terra do samba, do carnaval de rua, dos carros alegóricos, e etc e tal. 

Sambava-se no meio da rua, nos entreveros de rei Momo. Cordões se alinhavam pelas ruas, coloridos, animados. 

De modo que, se hoje nós chamamos Cachoeira Paulista, houve tempo em que chamaríamos, possivelmente, Cachoeira Carioca. 

Na rua de Baixo, aliás rua do Sapo, aliás rua da dona Chica Padeira, aliás hoje rua do Grupo, nome certo é rua Prudente de Morais, o que ninguém sabe a não ser o carteiro, nessa rua, certa senhora, chamada dona Adelaide, uma fazendeira rica, criou onze negrinhos, sem pai nem mãe, desfavorecidos da fortuna, favorecidos pelo sentimento de humanidade dessa mulher. 

Adotou os onze meninos e mandou ensinar aos onze um instrumento musical. Uns deles tocavam piano, outros trompetes, outros sax, outros trombones, outros violão. Eram uma orquestra, pode-se dizer. Fundaram ali na tal rua de Baixo um clube carnavalesco nos dias de Momo, chamado Flor de Abacate, e um poeira nos dias comuns, com o mesmo nome. 

Em certo carnaval os filhos da dona Adelaide saíram vestidos de índio, com mais uns trezentos foliões. Vestidos, digo mal, despidos de índios. Tinham sido algumas penas distribuídas em pontos estratégicos. 

No segundo dia de carnaval, que nesse tempo era no domingo, um outro cordão saiu à rua, numa zabumba louca, e ali, bem na esquina encontraram-se com o cordão do “Quem fala de nós tem paixão”. Foi uma briga memorável. Mais bonita até do que essas que acontecem no Clube, nas mesmas datas. Rolaram no chão os músicos, os índios, o cordão dos “Quem fala...”, os espectadores, foi tudo uma poeirama só, e aí bateu uma chuva, mas chuvão, de cachorro beber água de pé. E os foliões, murchos e enlameados, foram passar iodo nos machucadinhos, dos socos que levaram.
 
Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
Parece que não é bonito falar que, hoje, a fantasia mais usada pelos foliões cachoeirenses é o vestido de mulher. A gente sai à rua para ver os blocos, fica na Praça Prado Filho um tempão e é aquela originalidade: passa um fantasiado de Maria Antonieta, outro de noiva, outro de mulher feia, outro de mulher gorda, outro de grávida, outro de menina de escola, outro de prostituta, outro de donzela, um desfilar sem fim de mulherada. De homem ninguém se veste, Está parecendo que esta fantasia não convence. 

O que há de mais típico ainda em Cachoeira é o boi Catirina, de sólidas raízes folclóricas, enraizado na tradição. É um boi de vários metros, confeccionado em arame, papelão, pano, tinta, um chifre de verdade, arrumado no matadouro, e carregado por uns quinze homens que se enfileiram embaixo da carapaça estruturada sob a supervisão de foliões hereditários dessa nossa inefável Margem Esquerda. Eles vêm da outra Margem, cognominada a nossa Célula Mater, correndo, numa animação bruta, e correndo atrás da molecada, para dar susto e chifrar. Lá pelas tantas, as pernas do boi vão beber uma pinga. Voltam bem menos saltitantes. E, de pinga em pinga, o boi termina a noite carnavalesca, de joelhos. 

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