quarta-feira, 24 de abril de 2013

Malasarte e o cego

Ruth Guimarães

Desde menino, Malasarte já era daninho. Certa vez foi ser guia de cego, pediu esmola numa casa e deram pão com lingüiça. Ele foi, tirou depressa a lingüiça do pão e entregou o pão sem nada pro cego. Pedro, onde está a lingüiça? Que lingüiça? A que estava aqui dentro do pão. Aí não tinha lingüiça nenhuma. Como não? O senhor quer saber mais do que eu, que vi o pão que a dona trouxe. Mas eu estou sentindo o cheiro. O cego deu uma porção de cacetadas no Malasarte, aproveitou que estava sujigando ele com a mão. Pedro foi andando emburrado, puxando o cego, e daí falou assim:

- Dá um pulo aí, meio grandinho, patrão, que tem uma valeta.

O cego armou o pulo e foi com o peso do corpo, e bateu com o nariz num muro.

- Ô excomungado! Por que não me avisou que aí tinha muro? Falou que era valeta.

- Ué! Pensei que dava pra saber. Nariz que cheira lingüiça, cheira muro também...

Informante
Este caso foi contado por um tio e o pai da Autora, quando eram moços, amigos da troça e do malfeito. Um tinha o curso primário incompleto, outro o secundário.

O livro "La Vida del Lazarillo de Tormes, y sus Fortunas y Adversidades" apareceu em meados do século XVI, anônimo, na Espanha. Foi atribuído a Frei Juan Ortega, depois a Diego de Mendoza, aos irmãos Valdés e a Lope de Rueda. Teve inúmeros imitadores. Os críticos modernos acreditam que seu autor foi o escritor toledano Sebastián de Horozco. É possível que se trate da coordenação de contos da literatura oral. Conta a história de um homem que, quando menino, serviu de guia de cego, foi criado de um padre, de um escudeiro, de um 
frade, de outro frade que mercadeja indulgência, vendendo bulas papais, e outros. Quando guia de cegos, fazia buracos no saco das esmolas, e dali tirava torresmos e lingüiças; e roubava vinho das botijas, com um canudo de palha.

Em razão da deficiência, e de precisar se apoiar em meninos de rua, ou a quaisquer outras pessoas, para as atividades mais comezinhas, o cego já era desconfiado. Conta Lazarillo que o cego o maltratava muito - o livro está na primeira pessoa - e, para vingar-se, um dia em que chovia, conduziu o cego a um lugar onde a enxurrada passava junto a uma coluna de pedra. Ali o fez saltar, dizendo ser a corrente mais estreita nesse local. O cego saltou e bateu com tamanha violência na coluna, que caiu sem sentidos. O guia se mandou e desde esse dia, nunca mais o cego ouviu falar dele.

Um conto relatado por integrantes de uma colônia portuguesa do Vale do Paraíba é tão explícito quanto aos motivos da vingança do guia do cego quanto o conto brasileiro atribuído ao Malasarte.

O guia pediu esmola em uma casa, recebeu pão com toicinho, frito em torresmos. Comeu e deu ao cego somente o pão. O cego imediatamente reclamou:

- E o recheio do pão?

- Não tinha nenhum, não senhor.

- Havia toicinho aqui, ora se havia. Estou a sentir-lhe o cheiro.

O guia não disse nada, porém, mais adiante, quase junto a um moirão de cerca, avisou:

- Dê um salto, que em frente tem uma valeta.

O cego saltou e deu com o nariz no moirão.

Pôs-se a xingar em altos brados e o guia falou:

- O senhor cheira toicinho e não cheira pau na cara?!

Extraído de: Calidoscópio - A Saga de Pedro Malazarte. São José dos Campos, JAC Editora, 2006.

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