Ruth Guimarães
Faz tantos meses que me veio às mãos o seu princípio de romance, e há tanto tempo deveria eu tê-lo comentado, que nem sei se chegarão a tempo estas minhas palavras. Devem chegar, pois que a primeira principal virtude do artista é a paciência. Ninguém vai ao céu sem ela, ninguém sem ela poderá ser escritor. Paciência, amiga!
Sem dúvida me comoveu sua cartinha e aquele tão doce quão imerecido transbordamento seu de gratidão. E assim venho para esta prosinha, levemente constrangida, com a impressão penosa de quem bateu em criança ou de quem passou e num irrefletido impulso machucou entre os dedos distraídos pétalas macias de flor. Não foi o que fiz, mas é o que vou fazer.
Acabo de ler três capítulos do seu romance.
Noto de início que o livro está um pouco desalinhavado, o que é natural em quem estréia e num primeiro livro que está sofrendo a sua primeira série de metamorfoses. Um capítulo não parece ter grande coisa que ver com os outros. Entretanto isto é facilmente sanável. Há senões ortográficos e gramaticais, o que também se eliminará com relativa facilidade. O que já não é tão fácil de remediar é a ausência de transposição artística. Romance, diz a amiga? Creio que não, é mais uma narração minuciosa, espichada, explicada, de fatozinhos domésticos, sem importância, e exposição de incidentes que bem poderiam ser subentendidos.
Trata-se de uma crônica doméstica, um tanto sentimental.
Contar as coisas tim-tim por tim-tim, exatamente como ocorrem, sem transmitir a emoção que essas coisas suscitaram é fazer relatório. Não tem valor para o conhecimento do espírito.
Explicar as sensações, por exemplo. Para quê?
É preciso fazer os personagens viverem por si, fazer o leitor sentir as sensações deles sem tentar explicá-las. Como na vida.
“Entre as diversas pessoas, estava um moço vestido de linho branco, que, no primeiro momento, sem eu mesmo saber porquê lembrou-me os pombos brancos do meu avô...
... talvez porque eles se vestissem de branco também.”
Ora!
Ingenuidade é uma coisa linda, mas não num escritor, cuja primeira obrigação em suas núpcias com a Arte, é perder a inocência.
Devo acrescentar, pesarosamente, que o livro está mal escrito. É preciso cuidado, seriedade, estudo e paciência. Em primeiro lugar dominar perfeitamente a língua, sem o que se desvaloriza o dom e o talento.
Que diria você, amiga, de uma costureira que cortasse divinamente e não soubesse manejar a agulha?
Observe este exemplo:
“Tudo me chegou à mente, hoje de manhã, quando lia a carta, com uma nitidez de pasmar.” A construção confunde o sentido. A leitura é feita com uma nitidez de pasmar? E se disséssemos:
“Tudo me chegou à mente com uma nitidez de pasmar, hoje de manhã, quando lia a carta”? Mais claro, não?
E quando encontramos declarações como estas:
“Os jogos de pingue-pongue também eram formidáveis.”
Que quer dizer formidáveis?
Em outra passagem:
“Aqueles dias foram maravilhosos. E passaram. Passaram como tudo passa, na vida, o que é bom e o que é mau.” Repetição, lugar-comum e filosofice.
Uma vez que falei em lugar-comum, mencionarei ao acaso alguns que encontrei no livro, despindo-o de beleza, quanto à linguagem:
“por incrível que pareça”
“teve pleno êxito”
“o céu infinitamente azul”
“correu como uma louca”
“e depois que se ia eu ficava entediada e triste”
E há repetições que destoam, pois não são recursos de estilo, mas apenas cacoetes:
“E belos. Sim! soberbamente belos e azuis. Azuis como o céu, que tanto a encantou.
Devo reconhecer, entretanto, que nem tudo é defeito em seu livro. A prosa tem qualidades, um certo vigor, a amiga consegue um clima de expectativa e conduzir a uma narração sem que decaia o interesse. É um livro limpo, com diálogos um tanto preciosos, mas bem jogados.
Aconselho estudo e perseverança. Que se evitem os lugares-comuns e o preciosismo. Que leia os clássicos, pois neles aprendemos sobriedade e elegância.
Perdoe-me se a entristeço com esta conversa, ou se lhe destruo sem querer o estímulo. Não faria tais reparos se não lhe reconhecesse qualidades que podem ser desenvolvidas.
Amiga, nihil novi sub solum. Já tudo foi experimentado, tudo foi vivido, tudo foi dito. A maneira de dizer é que é diferente. A função do artista é despertar a emoção, e o belo, usando de maneira nova o seu modo de expressão. A missão do escritor é renovar o valor das palavras pela maneira peculiar e diferente de a usar. Usá-la, renovando-a.Usá-la, emprestando-lhe outra dignidade. Usá-la, vivificando-a e ampliando-a. Usá-la, indo até o fundo da sua significação e essência. E extrair dela, também, além do significado, o mistério e o silêncio. “O inexaurível segredo”, como diz Ungaretti.
Deixe-me repetir-lhe, como amiga:
Estude e persevere!
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