quarta-feira, 24 de abril de 2013

A flor do meu bairro

Ruth Guimarães

Por mais cedo que por ali passemos, jamais a encontraremos fechada. O retângulo de luz estará dourando o chão, parte na calçada, mais claro, parte na rua. De madrugada o cheiro sobe no ar, que cheiro de pão quentinho! e não tardará que se alinhem atrás do vidro do balcão as louras côdeas. Nessa hora ainda não clareou. Não é noite nem dia. As vozes têm alguma coisa de estranho, de gutural, parecem abafadas, distantes, diferentes. A luz da lâmpada toma uma tonalidade fantasmagórica como que envolvida em véus de neblina. Parece que subitamente a sala vai se esvair e sumir. Aos poucos ela se solidifica. Não há cantar do galo, mas as vozes afugentam os fantasmas, e ei-la risonha, firme, real, clara, ainda enfarinhada. Que horas são, seu Manoel? pergunta uma dona de casa. E ele, imediatamente: Faltam 22 minutos e meio para as sete, minha senhora! Vibram em sua voz ricas tonalidades, uma certa ressonância árabe. Palpita-me que seu Manoel, de negros cabelos e olhos sombrios, ardentes, e a sua matemática minuciosa, e mais o seu lirismo – flor do meu bairro, não é uma beleza? – ficaria melhor de albornoz, numa tenda, que de avental branco atrás do balcão da padaria. Por mais tarde que ali passemos, jamais a padaria encontramos fechada. Ela está aberta quando o último elétrico da noite deixa no subúrbio os últimos trabalhadores fatigados. Os passos nessa hora são mais tardos, trazem consigo o peso de tantas andanças e tantas canseiras, Deus meu! tantos trabalhos! As ruas são de um pétreo silêncio, duras impiedosas sob o pé doído, as janelas são olhos que se fecham hostis, para não ver. A luz acesa da padaria é um conforto. Há gente acordada, gente viva, afinal. 

Não estamos sozinhos no mundo, não senhor, ali está a flor do meu bairro. Dá vontade de comprar um pão, só para agradecer.

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