segunda-feira, 22 de abril de 2013

Língua Portuguesa

Ruth Guimarães

Essas coisas não deveriam acontecer justamente a mim, que, afinal de contas, sou até mais caipira do que o Guimarães Rosa, modéstia à parte. Um daqueles moleques pé-no-chão, fralda-de-fora, calça-rasgada, apanhou a arapuca e a foi armar na cerca do campinho; arrumou o laço, dispôs o visgo no tronco do maricá espinhento, que já começou a florir nas baixadas e nos dá um arremedo passável de neve, com aqueles pomponzinhos brancos, macios, de pluma e penugem. Pois, em vez do cuió cantador e do canário cabecinha-de-fogo, quem havia de cair no laço, senão um passarinho, de casa marrom claro? Corruíra, parecia, das gargalhadas felizes, borbulhando no fundo da gorja, enquanto o bico, voltado para o céu, se abria. Ou cambaxirra, que também se chama, nome onomatopaico, que diz bem dos xxx, seu canto todo esfervilhante de rrr e chiados, quando goela a mais não poder ao quente sol deste verão maluco. Será assim, a carriça portuguesa, com este casaquinho cor-de-barro-seco, e este olhinho assustado, contas negras, inquietas, e coração palpitante sob os meus dedos? E terá assim, como o nome indica, o seu canto afogado em sol e em rrr e sss? Pois, como boa ave lusitana terá as sibilantes em lugar das nossas relaxadas palatais. 
Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
Mas o moleque cortou tantas cogitações sem pé nem cabeça dizendo que não, que era uma brejeira à toa, Passarim sem valor. Brejeira? Tirando-lhe o susto dos olhinhos negros e a palpitação das asas frementes na ânsia de fugir, bem me parece brejeira. E muito simpática. Posso imaginá-la piscando gaiatamente. E posso vê-la na sua dança, muito leve sobre um galho seco, tão trêfega e feliz, e tão cascateante de risos. E como terá essa gente matuta conservado a significação da palavra brejeira, de maliciosa sutileza, tão alheia ao espírito sertanejo? Verdade que conhecemos certas palavras arcaicas, ainda em uso no sertão, com que nos maravilhamos sem motivo nenhum. Algures, por exemplo, muito bem empregada por qualquer caipira mambembe. E o verbo aplaudir, em uso muito antes do advento da TV e do rádio. E botica. E boticário. E descortesmente. E outras maravilhas assim. Enquanto lhe acariciava a cabecinha, pensava na história da Donzela e da Moura-Torta, “o moço foi passando a mão pelo pescocinho de plumagem fora, depois pela cabeça. Parecia que a pombinha estava gostando. Fechava os olhinhos de conta, demorava com eles fechados, e o arrulho se fazia gentil e suave: rumrrummrrrrummmmmm. E, então, de repente, os dedos do moço tocaram em uma coisa dura. Que é isso? – separou as penas – uma cabecinha de alfinete! Ela fez você sofrer, pombinha? Quem foi o malvado que fez isso? Quem foi? Arrancou o alfinete. Uma gotinha de sangue manchou a alvura da cabecinha da ave. Parecia que ela começava a crescer. As plumas se douravam, se afinavam, se alongavam. Arredondava-se o colo. Estendia-se o corpo. E num instante estava junto do moço aquela bonita mulher que...” Brejeira? – perguntei. Por que, brejeira? E o moleque teve esta resposta sublime: Porque é Passarim do brejo, uai!

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