Ruth Guimarães
Meu avô era dono de uma vila de casinhas amarelas, com janelas azuis, como santas-cruzes do caminho, esplendorosas do ponto de vista da autenticidade, lindas como afrescos primitivos. E também dono de uns métodos abomináveis de despejo, como vou contar daqui a pouco. A vila era como um formigueiro, fervilhante, o velho colérico e para ele só havia duas espécies de inquilinos: os pontuais e os caloteiros. Se pagavam, muito bem, podiam fazer o que quisessem, e havia festas incríveis no cortiço, brigas, barulheiras, o diabo. Se não pagavam, rua! E se alguma vez protestava timidamente, negando ao velho o direito aos processos que usava, ele estrondeava com um vozeirão reboante:
- As casas não são minhas?
E respondia a si próprio, com um argumento assombroso e irretorquível:
- E antão?
Mandava chamar o Crispim, um negro solerte, muito ativo e risonho, seu factótum, e dizia:
- Oh! Crispim! Descubra-me a casa da Isabel Pé-de-Gancho!
- Não dá galho, seu Botelho!?
- Qual! Que galho? Eu estou mandando, homem!
E lá ficava a Isabel Pé-de-Gancho, com os tarecos no sereno, e às vezes na chuva, na casa destelhada.
Soldado Nicácio era metido a valentão, conquistador de mulheres casadas e com certo sucesso. Veio morar no “correr”. Tinha mulher e um filho pequeno. Foi um dia, depois de esperar em vão por acerto de contas adiado de mês, o velho Botelho chamou o Crispim:
- Mande vir o carro de boi. Vou fazer a mudança do Nicácio.
Crispim olhou meio em dúvida, ria e não ria, ia e não ia cumprir o mandado. Aquela era forte. E com soldado de polícia ainda por cima.
- Que é que há, oh! malandro?
O “faz-tudo” se afobou.
- Não é nada, seu Botelho. Eu já vou indo.
E foi. Apareceu o carro de boi, com quatro juntas luzidias. Sob o olhar espantado da mulher do soldado, os seus trens foram empilhados no carro, depois que o velho Botelho comandou, ríspido:
- Oh! Crispim! Vá à cadeia e chame aqui aquele cachorro. Ele que venha acompanhar a mudança.
Num átimo, o estarrecido Crispim estava de volta, com Nicácio, espantadíssimo. Não houve cenas nem protestos. Mal o soldado tentou dizer alguma coisa, o velho Botelho gritou:
- E cale a boca!
- Mas... m... m... mas...
- Cale a boca!
O carreiro se achegou muito manso, muito humilde:
- Seu Botelho, e agora? Toco pra onde?
Aí o velho destemperou:
- Toca pro inferno! Suma-se da minha vista!
- E a mobília, seu Botelho? Eu...
- Já disse que vá pro inferno! Jogue no Paraíba!
Carreiro cutucou os bois de guia. Eia! Vamos! Amo! Amo! Tomou docilmente a rua do Aterro, para o lado de cima, virou a rua da ponte, e foi direto para o lado do Paraíba. Nicácio foi a pé andando atrás. E mais atrás a mulher com o filho no colo, na mais esquisita das procissões. Lá adiante, Nicácio pegou a criança, deu uma corridinha e sentou-se na beirada do carro. A mulher fez outro tanto. Eram moços. Havia muito de imprevisto, de aventuroso, de burlesco, em tudo aquilo. Começaram a rir. O carro chiava uma canção de uma nota só. Nhen-nheeen-nheeeen-nheen.
Alguns dias mais tarde, o velho, intrigado, chamou Crispim, sacudindo o jornal.
- Leia-me isto aqui, oh! Crispim. Não entendi bem. Diz aí que agora há uma tal Lei do Inquilinato...
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