quarta-feira, 24 de abril de 2013

Canturino, canturião

Ruth Guimarães

Serafim é escritureiro, canta na escritura, isto é, passagens da Escritura Sagrada. Sebastião também é escritureiro, pelo menos hoje. Ouço-o cantar, lamentosamente, numa cadência de cantochão:

Bastião tá envergonhado
eu quero falar direito
as trovas me sai errado.
Ai! quero tirar licença,
Ai! pra cantar verso acertado.
Alembrei de Jesus Cristo,
aquele meu pais amado,
naquela hora angustiosa
em que ele foi amarrado
na presença de Pilatos
ai! eu já canto acertado
alembro meu pai amado
a vergonha ficou de lado.

Entre uma carreira e outra depois que todos os cantadores cantam usando uma rima há um intervalo para passarem a outra rima. E nesses intervalos vou aprendendo com os violeiros a saborosa linguagem cururueira. Estou gostando de aprender e eles estão gostando de ensinar.

Zico Mineiro disse que não canta na escritura, porque é ponto de letra.

— O que é isso?
— Coisa que a gente precisa ler nos livros e depois inventar os versos para contar o que leu.

Aprendo que cantar profundo.

— Coisa que a gente precisa é entrar de cheio no assunto. Que cantar por volta é fazer uma espécie de trocadilho sonoro — cantar uma coisa dando a entender outra diferente.

Cantar pesado, diz-se do verso firme e bom. Cantar colosso — cantar muito bem cantado. Canturino é o que começa a aprender cururu. Canturião é o mestre cururueiro. Cantando no certo

Depois canta Sebastião Soares que é claramente um desajustado. Parece esquizofrênico e canta tão profundamente integrado na cantiga que comove. Fica em êxtase. Desnutrido, miudinho, com gestos excessivos e um significativo alheamento do ambiente, interpreta uma espécie de oração. Reza, gesticula, fala com algum imaginário espectador, que vê através de todos nós. Nossa Senhora e os santos são as constantes do seu canto. Coisa de dar nó na garganta, vê-lo em pleno delírio místico, embalado pela monotonia do canto.

Villanova —- rústico, arruivado e sanguíneo de olhos claros, filho de colono— é tão moço e tão espontâneo que ri das próprias respostas quando são boas. Foi discípulo de Agostinho Aguiar, canta há seis anos, é vice-campeão de cururu, com duas medalhas, e forma com Zico Mineiro a dupla de namoradores dos canturiões locais.

Vilanova começou a aprender cururu numa roda caseira. Roda de frangos, diz pitorescamente. É natural que se tenha curiosidade de saber o que sentem esses cantores nas suas primitivas manifestações de arte.

— Escute aqui, Vila, você não sente um frio na espinha quando canta em público? Não tem medo de errar?
— Medo a gente não tem, não é?
— Nem um pouquinho?
— A gente fica nervoso certa hora.
— Quando?

Aí vem a magnífica resposta:

— Fico nervoso certa hora, não só eu, mas qualquer cururueiro, quando estou cantando no certo, e sei que estou indo bem e quem está escutando não apoia.

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