Ruth Guimarães
Há uns trinta anos, quando eu morava em São Paulo, sempre voltava para minha chacrinha em Cachoeira Paulista, herança de meu bisavô Juca Botelho, guarda-chaves da Central do Brasil. Numa de minhas voltas fiquei impressionada com a chuva que Deus dava, mas chuva mesmo, sem um momento de estiada, a água suja inundou a várzea, o barro transformou as ruas em amostra da era primordial, as comunicações para os lados da Bocaina foram interrompidas. Rodaram todas as pontes, exceto as construídas por Euclides da Cunha. O leite deixou de descer das fazendas da Serra. Pessoal dos Macacos, das invernadas para além do Cachoeirão, ficou mais uma vez isolado nos seus píncaros. E era chuva que Deus dava, pródigo Alá!
Naquele ano a água subiu até a laranjeira, e onde havia perfumadas flores e abelhas doiradas rodopiavam as folhas amarelas. Em torno das raízes da que fora noiva do sol nadavam as desaforadas traíras.
No ano seguinte fui tarde para o Vale do Sol, meu Vale. Esperava que os belos dias tivessem vindo. E que me esperassem, apesar de brigados comigo, por um motivo que contarei depois, o pássaro, a manhã e a flor. Pois, amigos, era chuva que Deus dava, chuva e mais chuva, que entrou por fevereiro a dentro, estragou o carnaval, molhou a presença e a paciência, impediu os passeios e ainda por cima não me deixou ir tomar o tal caldo de cana prometido em tempos que já lá vão pelo amigo Ditinho do Ciano (continua devendo).
Afinal a temporada não ficou estragada de uma vez, porque arrumaram linha e anzol, vara de bambu, banco, saco de estopa, chapéu de palha e os homens da casa acharam jeito de pescar na porta da cozinha, enchendo cestas e mais cestas de traíra da miúda e corimbatá, vindo todo o santo dia incomodar a gente com umas enormes fieiras de lambari para fritar. Até que o esporte perdeu de uma vez a graça, depois de ter passado pelas variantes da pesca de peneira e de tarrafadas na água barrenta do campinho.
E fomos embora.
Entrementes aconteceu a tragédia de Caraguatatuba, e por muito tempo as águas do rio Paraíba continuaram subindo. Rio, meu rio, do Vale do Sol, tornado monstruoso e semeando a morte pelo caminho. Que devorou colheitas do dourado arroz, apendoado, fazendo-as apodrecerem na lama. O que empurrou com monstruosas mãos de água assassinas as choças dos piraquaras.
Trinta anos se passaram. Janeiro outra vez. O pássaro está perdido. A manhã está perdida. E está perdida a flor. Afinal, nada novo.
Lucrécio há mais de dois mil anos já afirmava que os deuses, se é que existiam (ressalva dele) não se interessavam de maneira nenhuma pelos assuntos humanos.
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