domingo, 28 de abril de 2013

Janeiro no Vale

Ruth Guimarães 

Há uns trinta anos, quando eu morava em São Paulo, sempre voltava para minha chacrinha em Cachoeira Paulista, herança de meu bisavô Juca Botelho, guarda-chaves da Central do Brasil. Numa de minhas voltas fiquei impressionada com a chuva que Deus dava, mas chuva mesmo, sem um momento de estiada, a água suja inundou a várzea, o barro transformou as ruas em amostra da era primordial, as comunicações para os lados da Bocaina foram interrompidas. Rodaram todas as pontes, exceto as construídas por Euclides da Cunha. O leite deixou de descer das fazendas da Serra. Pessoal dos Macacos, das invernadas para além do Cachoeirão, ficou mais uma vez isolado nos seus píncaros. E era chuva que Deus dava, pródigo Alá! 

Naquele ano a água subiu até a laranjeira, e onde havia perfumadas flores e abelhas doiradas rodopiavam as folhas amarelas. Em torno das raízes da que fora noiva do sol nadavam as desaforadas traíras. 

No ano seguinte fui tarde para o Vale do Sol, meu Vale. Esperava que os belos dias tivessem vindo. E que me esperassem, apesar de brigados comigo, por um motivo que contarei depois, o pássaro, a manhã e a flor. Pois, amigos, era chuva que Deus dava, chuva e mais chuva, que entrou por fevereiro a dentro, estragou o carnaval, molhou a presença e a paciência, impediu os passeios e ainda por cima não me deixou ir tomar o tal caldo de cana prometido em tempos que já lá vão pelo amigo Ditinho do Ciano (continua devendo). 

Afinal a temporada não ficou estragada de uma vez, porque arrumaram linha e anzol, vara de bambu, banco, saco de estopa, chapéu de palha e os homens da casa acharam jeito de pescar na porta da cozinha, enchendo cestas e mais cestas de traíra da miúda e corimbatá, vindo todo o santo dia incomodar a gente com umas enormes fieiras de lambari para fritar. Até que o esporte perdeu de uma vez a graça, depois de ter passado pelas variantes da pesca de peneira e de tarrafadas na água barrenta do campinho. 

E fomos embora. 

Entrementes aconteceu a tragédia de Caraguatatuba, e por muito tempo as águas do rio Paraíba continuaram subindo. Rio, meu rio, do Vale do Sol, tornado monstruoso e semeando a morte pelo caminho. Que devorou colheitas do dourado arroz, apendoado, fazendo-as apodrecerem na lama. O que empurrou com monstruosas mãos de água assassinas as choças dos piraquaras. 

Trinta anos se passaram. Janeiro outra vez. O pássaro está perdido. A manhã está perdida. E está perdida a flor. Afinal, nada novo. 

Lucrécio há mais de dois mil anos já afirmava que os deuses, se é que existiam (ressalva dele) não se interessavam de maneira nenhuma pelos assuntos humanos. 

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