domingo, 28 de abril de 2013

Impressões da enchente

Ruth Guimarães 

O tempo virou. De novo, virou. Amanheci prisioneira. Grades contínuas de prata desciam e se emendavam pelas pontas brilhantes, tremiam no ar descolorido sempre. É sempre o mesmo frio? São outros? Eu sei? O vento enrola lianas argênteas nas folhas verdes e desenrola e sacode a ramada. Tudo cinzento e verde. Eu vejo bem a alegria da árvore que virou moça bonita em dia de namoro. Tem um gesto e uma cor e um brilho. E o meneio para lá e para cá, amada e feliz. Também ouço o sussurro desses amores, um cochicho muito ciciado muito juntinho à concha enrolada das folhas. 

Um burro friorento, numa carroça, tem arrepios longos, a modo de um súbito ondular que o percorre da crina ao espanador gasto do rabo. Sabei-me lá o que pensa este burro, se é que pensa, em que pecado deteve a lembrança, se num coice dado fora de hora, se no furto de uma alface num tabuleiro. Que estará pagando esse triste, feio, miserando burro, para ficar na chuva assim? As crianças que passam correndo para a escola vão pela chuva, sem proteção, sem agasalho, mesmo assim dão gritinhos alegres. Festa a chuvinha molhando os cabelos, que festa! No entanto lá dentro da sala de aula com o professor dando frias conjugações de verbo e fazendo contas frias na lousa negra, toda riscada de branco, que frio! A roupinha fina cola no corpo, o pezinho está gelado embaixo da carteira e o barro gruda, produz rachaduras entre os dedos, esfria, dá tristeza, burrice, vontade de chorar. Quede de aprender assim? A lavadeira também não tem guarda-chuva, vem de longe buscar a roupa, não poderá trazer na semana, nem ganhar por ora os minguados reais. 

E me ponho a pensar nessa água celeste benfazeja, que de vez em quando derrama-se a mais e molha e inunda e cobre a terra e quem está na terra. Diz-se que caiu barranco em Lorena, que caiu casa em Guaratinguetá, que em Bananal morreu uma dona com uma criança no colo, na enxurrada. Que no Nordeste mais de 540 mil filhos de Deus, que habitam seis Estados tão risonhos ao sol!, foram afetados pela fartura despropositada das águas de março – atrasadas. Mais de 70 mil pessoas de 299 municípios do Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte estão ao deus-dará, dormindo no chão limpo dos mercados e em velhos prédios abandonados. E o jornal fala que muita fruta de exportação, pão e trabalho para tanta gente nas baixadas, ficou retida, apodrecendo, que as estradas não davam passagem. E a inundação das cidades, tanta coisa rodando na água barrenta, que nem se podia aproveitar, misturada que estava no arsênico de matar ratos, e à sujeira. No entanto, a estas mesmas horas e pelo mesmo motivo, devem estar viçosas as hortas e os pomares. E a lavoura do arroz do Vale do Paraíba, como deve estar ridente, tão densa! tão bela! mar de tinta verde derramada! Tenho alguma coisa que ver com esses que não têm sapato, nem roupa de lã, nem licença de ficar em casa quando chove? Chuva, chuva de prata, chuva linda para se ver por trás da vidraça!

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