domingo, 28 de abril de 2013

Horário dos Subúrbios

Ruth Guimarães

Um horário de trens de subúrbio é coisa muito útil, caros leitores. E isto é tão bem compreendido pelos técnicos em publicidade que lhe dão o mesmo valor que aos calendários de bolso. É assim que correm os horários impressos com o reclame da goma tal ou do sabão tal. Teria que ser devidamente ilustrado, tentativa que se pode fazer num dia assim, de chuva assim.

(antigamente, no tempo da garoa, a coisa era romântica, e até mesmo poética. Os enamorados do luar e do chuvisco se esqueciam do tijuco preto ou do barro vermelho e só viam o fino véu de nevoa, polvilhando de prata os cabelos e as almas. E com isto tanta gente tem saudade de uma garoa que nunca viu, como tem saudade dos lampeões de esquina, baços na noite, que também nunca viram. Mas era de trens que estávamos falando)

O primeiro e o segundo, às 3h41 e às 3h58 são de pedreiros, geralmente adidos às grandes construções do centro e na baixada do Pacaembu. Seus ocupantes vão sonolentos, cabeceando, não conversam, usam roupa ruça, grandes paletós de bolsos caídos, sapatões cambaios, manchados e corroídos de cal. Às 4h21 é a primeira e ruidosa leva de operários, entre os quais a imensa maioria é de uma juventude verdinha e mais de uma áspera adolescência. Temperada nas madrugadas frias, na condução cheia, na espera, na comida pouca, na ambição nenhuma, no trabalho pesado e monótono, mas que ainda assim ri desde manhãzinha.

Essa é a hora das piadas infames, das risadinhas desinibidas, dos encontrões, dos brinquedos brutos de torcer o braço e empurrar com uma certa ternura envergonhada de se mostrar. 

Também é a hora dos primeiros casais de namorados do dia, enlaçados buscando o pão e o amor com a mesma ansiedade.

4h56, 5h56, mais trens de operários, especiais da Vila, especiais de Guaianazes, especiais de São Miguel, especial de Itaquera, e misteriosamente a cidade absorve, esconde e traga toda essa gente. Estão diante dos teares, ao calor dos fornos, entre turbinas e maquinaria, nas máquinas de costura, são torneiros, overloquistas, fresadores, e nomes tão estapafúrdios como esses, cuja significação procurei no dicionário e na mesma hora esqueci.

O subúrbio das 6h38 traz a leva dos estudantes e das professorinhas da zona rural, clara, quente, colorida, barulhenta multidão. O das 7h16 é do pessoal dos escritórios comerciais. A litorina das 8h13, dos despachantes, advogados, gente da lei e da segurança. O trem das 8h26 é dos milicianos, dos guardas, das cozinheiras da zona granfina, do mulherio que trabalha por dia, dos que trabalham por conta própria, encanadores, engraxates, marreteiros. Os funcionários andam nos trens de 10h23 e 11h11. E daí para a frente começa a atabalhoada volta.

Mas em nenhum desses trens, em nenhum, desde que começa o dia, faltam aquelas crianças que vendem cocada, e os cegos de longas litanias. De onde vêm, para onde vão, que destino é o seu? Qual será o fim da viagem que não termina jamais, porque recomeça indefinidamente?

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