domingo, 28 de abril de 2013

Finados

Ruth Guimarães 

Devo dizer, primeiramente, que não fui visitar nenhum cemitério, nestes últimos Finados. Não. Porque é dia de festa na cidade dos mortos, e que vai lá fazer quem tem a chorar? É dia de encontro na cidade dos mortos. Dia de namorado de mãos dadas, nas alamedas floridas. Dia de saudações em voz alta, nos arruamentos, em outras ocasiões tão silenciosos. Dia informal de comer pipoca e sanduíche, em boa companhia, em horas cálidas e animadas, enquanto se lêem, entre risadas, os epitáfios daqueles túmulos enegrecidos, enormes, frases e nomes que ninguém usa mais. E tudo é motivo de riso, com dois incentivos para a moçada que se esparrama gárrula por aí: não é lugar e nem hora para a alegria. E tanto encontro inesperado! E tanta claridade! E tanto enfeite. E tanta gente! E tanta gente! E tanta gente! 

E que vem fazer tanta gente no cemitério em dia ligado à lembrança dos mortos? Vem ver quem aqui não está? Agradecer? Matar a saudade? Acender velas? Vem por amor? Vem por medo? Vem porque todo mundo vem? Vem para ver quem? Vem porque aqui não dá medo? “Eles” estão aprisionados nos seus esquifes e nos seus túmulos, no seu silêncio e na sua morte. E vem tanta gente! 

Vêm olhar as flores coloridas, confeccionadas em pano, papel crepom, plástico, papelão, cartão. Para onde foram as flores naturais? 

Dia 2, sim, é tudo claro, tudo alegre. Tudo riso. 

Mas que vem fazer tanta gente no cemitério? Acender velas é uma prática milenar, ligada ao fogo. Não vamos enveredar por esse caminho de mitos solares, nem de morte, nem de inferno, eis que o nosso amável assunto tem que ver somente com festejos. E é preciso bem que aproveitemos, quando se nos oferece ensejo para mais uma festa, quando o quadro é sombrio e nada nos leva a crer que vêm por aí motivos de alegria. 

Então, que vem fazer aqui tanta gente? Há apenas uma coisa de que a humanidade não se cansa: é de pedir. 

Pedir aos mortos? Onde estão os mortos nessas tardes claras de novembro, com o sol, o belo sol, quente, luminoso, o antípoda da morte, iluminando tudo? Onde estão os mortos numa hora dessas, sem sombra (que é o reino dos que se foram), sem o vazio (que é o nada dos que se ausentam)? 

Não sei se em todas as cidades do Vale do Paraíba, mas em muitas delas, os cemitérios guardam a lembrança de alguém muito caridoso ou que sofreu muito para morrer, ou que sofreu injustiça ou padeceu de morte feia e por isso fez jus à santidade. 

Por isso fez jus a um tratamento especial do povo: a uma adoração miúda, expressa por orações, terços rezados em conjunto, visitas freqüentes ao seu túmulo, no correr do ano. É uma verdadeira canonização popular. Fazem-se pedidos e promessas. Quem os procura, geralmente para contornar problemas de saúde, saiu desesperado das filas de hospitais do coração, do câncer, da tuberculose, da desnutrição, da velhice. Eles são os verdadeiros pobres, os infelizes, os abandonados, os solitários, os que a sorte esqueceu. Os sem sorte. Os desamados. Os que não têm ninguém. Os órfãos. Os exilados. Os que não têm língua e os que não têm voz. Os enjeitados. Os estrangeiros no mundo. Os doentes do corpo e os doentes da alma. 

Em São Paulo, todos sabem onde fica o túmulo do menino Antoninho da Rocha Marmo, num daqueles imensos cemitérios da Consolação. É para onde acorre uma verdadeira multidão, em busca de ajuda, de consolo. Para o santinho correm as multidões em busca de ajuda, paz, obter saúde e outros dons que nos dá o Senhor, por meio desses humildes auxiliares. Se não der saúde, dá-nos paciência, que disto necessitamos. 

Em Jacareí, junto aos luxuosos e solenes túmulos dos barões do café, de mármore importado, lá está a sempre visitada sepultura da menina que morreu queimada e que faz milagres. A menininha que lá no céu nos guarda, derrama graças em quem dela necessita. 

Na cidade de Cruzeiro, no fundão do Vale, são vários os mortos milagrosos, todos mal saídos da infância: duas meninas e um menino. Esses ajudam a curar de doenças mui terrenas: recaída de sarampo, ventre virado, bicha assustada. Nessa mesma cidade há um morto santificado, médico, que em vida se chamou dr. Mário Silva Pinto. Ele era daqueles médicos de hábitos democráticos, que ia, com sua maleta surrada, à casa dos sofredores, e os animava. Todos o conheciam, todos o cumprimentavam nas ruas. Ele morreu, mas não morreu para os seus fiéis pacientes. Continuou vindo pelas ruas da cidade. Como não tinha carro, andava de ônibus, a pé, e até de carona. E hoje é visto nas casas onde uma parturiente de risco joga a sua vida, para trazer outra ao mundo. Morto, ele continua sendo o obstetra das pobres mulheres pobres. Ele vai à casa das desvalidas, principalmente daquelas que ainda não têm uma total incapacidade de viver bem, e não adquirem no seu tempo de vida nenhum valor social. 

E quando vai embora o dr. Mário, tudo está em paz. Fica a mãe que sorri, e um nenê forte e rijo, que berra. O que não é bem o saldo que temos agora, com a Saúde no estado em que está. 

Quando os poderes da terra não tomam nenhuma providência, Deus encaminha – diz o povo, esquecido de que os caminhos do Alto são outros, não aqueles que almejamos.

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