Ruth Guimarães
Confesso uma paixão de controle pouco cerebral por
Fiodor Dostoievski e, por extensão, por quem dele se enamora e por quem dele se
deixa enamorar, influenciar, penetrar.
Paixão por não saber como classificar o que não é
divino, nem infernal, nem terrestre. A pobre linguagem humana, como poderá
chegar a dar uma pálida ideia do que acontece no fundo das almas e como se
comunicam uns e outros e como se entendem os sentimentos de uns e outros. Como
dar uma pálida impressão das profundezas da alma.
Tem que ver não só com a escolha das palavras
significativas, dentro de um contexto, mas com a sua música, o seu ritmo, o seu
pulsar, o seu juntar-se à nossa dor e à nossa alegria.
No seu primeiro romance, esse russo inefável, já
aos vinte e cinco anos de idade, dá voz àquela gente que não tem de seu senão
os sentimentos. Gente que conhecemos,
ele na Sibéria e nós aqui. Homens e mulheres que passam por nós nas ruas, no
metrô, abandonados pelos poderes e pela justiça dos homens. Gente de quem Luís
Avelima conhece o pulsar. E, a bordo dessa vivência por vários mundos –
incluída aí a Sibéria de Dostoievski, onde esteve durante seus oito anos de
residência na Rússia – nos ajuda a trazer para o português o que parecia que só
a língua cirílica poderia traduzir.
A tradução que Luís Avelima nos traz de
Doistoievski é tão singular quanto doce, e tão suave quanto trágica. As
epístolas trocadas entre Makar e Varvara exibem imagens como esta: “Envio-lhe
algumas uvas, meu coraçãozinho; dizem que são muito boas para os
convalescentes, e o médico as recomenda para matar a sede, apenas para matar a
sede.”
Esse moço, Avelima, que conheço de muito boas
notícias, parece ter na alma a identidade com o conteúdo da primorosa tradução
que fez: um homem honesto em relação aos sentimentos próprios e dos outros;
homem tocado pela fraternidade; homem movido por um sentimento de
humanidade. Como Dostoievski.
Foto de Botelho Netto |
E é por essa identidade que ele nos obriga a amar,
com toda a alma. Pois traduzir assim é divinatório, é criar e exercer o contato
de duas vidas. Sinto-me enriquecida.
Nota:
“Gente Pobre”foi editado pela Editora Letra
Selvagem, de Taubaté, criada e mantida pelo escritor e pesquisador Nicodemos
Sena, que não busca o lucro, mas o resgate de obras que as grandes editoras
desdenham. Sena foi quem garimpou o original e convidou Luís Avelima para
realizar a tradução.
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