Ruth Guimarães
E como agora houveram por bem os nossos governantes dar alguma atenção à cultura brasileira, é hora de lembrarmos o iniciador do movimento, digamos, caipira de nossa história literária.
Quando todos os nossos escritores repetiam as frases e o arranjo portugueses do nosso falar e escrever, surge aquele moço com uma invenção, o caipirês, e mais: documentando, que o caipirês não é uma questão de erres gordos e de palavras truncadas, mas ritmo, som, estrutura e sentimento brasileiro, e estilo nosso, tão respeitável quanto o de além-mar, tão aceitável quanto os falares do lado de lá. Que queria o tal escritor, um promotorzinho pouco mais que desconhecido?
Ele queria demonstrar que não podemos chamar de caipirês os nossos enganos, mas a nossa diferenciação. Diziam dele que queria ser original. “Que fique sozinho!” E sozinho ficou Valdomiro Silveira, em defesa de nossa identidade cultural falada e escrita, brasileira, documentada na pesquisa, no trabalho, na coleta séria, tenaz, paciente. Um bom par de anos. Humildade, isso?
Eu chamo de arrogância, somente porque não tenho outro nome mais bonito pra falar. Ah! Tenho sim. Era orgulho, o orgulho que até agora nos está faltando, o orgulho de ser brasileiro. Mas não era só a fala, nem eram as situações. Eram os tipos, o caráter, a fidelidade e a verdade de um brasileiro que Lobato caricaturou no Jeca Tatu, que Mário de Andrade mitificou no Macunaíma, que seria o herói em Guimarães Rosa, do “Grande sertão: veredas” , romantizado em Afonso Arinos, áspero no velho Graciliano, fechado em Amadeu de Queiroz, caipira simplesmente, sem romance, sem culpa, sem desculpa, sem grandeza, sem xingamento, sem remorso. Gente. De modo que, quando Miroel Silveira quis fazer o seu teatro caipira, com os tipos mais brasileiros, onde os iria buscar? Pois, no mundo caboclo de Valdomiro Silveira. Ali mora o Brasil exato.
Aconteceu que Miroel me convidou para escrever “Romaria”, uma peça de teatro a quatro mãos, experiência nossa primeira e única. O que tivemos de escrever e reescrever, até encontrar a palavra que contava e o que devia ser contado! Miroel, metade contava, metade adivinhava e metade inventava. Ana Cabreuvana, a protagonista, era uma espécie de altar. Ela teve de ser arrancada das brumas em que vivia, em que era pisoteada, indefesa, solitária, mulher, para ser mostrada na sua integridade vital. A passagem mais difícil foi a fala de Nossa Senhora Aparecida.
Foto de Botelho Netto |
A fala? Ah!, sim, a fala. Essa nos deu o que fazer. Primeiro Miroel escreveu. Não deu certo. Ele tinha um grave defeito: não era caipira. Depois eu escrevi. Não deu certo. Depois juntamos os dois textos e tiramos uma média. Piorou. Cada um reescreveu novamente em separado. O texto de Miroel ficou extenso demais, o meu incompleto. Experimentamos intercalar as frases, saiu uma colcha de retalhos. Aproveitamos duas ou três frases e voltamos ao primeiro texto. A personagem começava a surgir na sua rústica verdade. Mas ainda faltava muita coisa. Miroel saiu mostrando os textos a não sei quem, aqui e ali, inclusive a Renato Teixeira. Um dizia uma coisa, outros diziam outra. Então começamos a trabalhar sobre dois desses textos: o primeiro e o penúltimo. Apara daqui, corta dali, acrescenta de lá. Aí eu entrei com o caipirês, que eu sou caipira, graças a Deus.
A Ana Cabreuvana surgiu completa, magnífica de coragem, ardente na revolta, firme na fé. Surgiu, viva, aquela cabreuvana, prisioneira de ter sido prostituta. Surgiu, viva, para sempre, sem nada de sinistro, somente o dia a dia, o mesquinho dia a dia, as acontecências e a imensa interrogação dos filósofos, dos poetas e dos contistas compassivos.
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