terça-feira, 23 de abril de 2013

Cinzas

Ruth Guimarães

Passou o tempo das Cinzas, ninguém reparou, ninguém se submeteu àquelas práticas suscitadoras de humildade, conforme a palavra grave do antigo Livro: “lembra-te, homem, que és pó e em pó se tornará!...” 

O que acrescentar ao “Memento Homo?”. Que palavras dirão mais do que o que foi dito? Já chegamos à conclusão, se nos convencermos de que somos perecíveis. Que o que amadurece apodrece, que o que sobe é obrigado a cair, que o que nasce, nasce para morrer. Mas dói o poeta e secundou: “Lembra-te também que és luz e luz tornarás a ser. Porque o pó e a luz nasceriam no mesmo dia e da mesma semente.” 

A quaresma veio e se foi, e ninguém suspeitou sequer que ela esteve aí. E da páscoa se lembram somente porque o comércio não nos deixa esquecer de comprar os ovos de chocolate. Nesta nossa terra de famintos tudo acaba em comida. 

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
Entrar na igreja nas quaresmas de antanho era fugir para um reino místico, assombrado, penumbroso, entre negro e roco, num silêncio de catacumba. Aqueles conhecidos como santos, nos altares, eram formas anônimas, caladas, escondidas nos nichos silenciosos. A linguagem era a da confissão e da penitência. A alegria estava banida para sempre. E a confiança idem. E os santos, despidos de suas atribuições, tão desvalidos sem a procura dos fiéis! É certo que nesses tempos ninguém vai procurar Santo Antônio, para convencê-lo a patrocinar casamentos. Quaresma é trégua. Santa Ria dos Impossíveis não deverá favorecer milagres, numa hora destas de tanta tribulação. Pausa no peditório a São Judas Tadeu, para que resolva aqueles casos difíceis de falta de dinheiro, sem ter onde buscá-lo e de contas antigas e SPC, que isso não havia em vida do prestimoso santo, padroeiro dos inadimplentes, novo movo dos caloteiros. Quem se lembra de Santa Bárbara? 

E não é hora, ah, não é hora de queimar palha benta, e bem precisados de auxílio estamos, com tanta enchente, tantos raios e trovões e água brava, e tanto granizo, e tanta onda brava! E nem se chama Santa Luzia a ajudar a tirar cisco no olho, ela com aqueles olhos magníficos, brotados no rosto jovem de princesa, e outros olhos numa bandeja, para oferecê-los ao seu algoz. E Santa Luzia, será a mesma? Passou por aqui, não se sabe por onde vai, com seu cavalinho comendo capim. São Longuinho também está de férias e não mais o vemos procurando os perdidos em troca de três pulinhos, ou de três gritos. Três gritos, vá lá! Que são Longuinho era um conspícuo centurião romano e devia estar acostumado com as ordens aos berros em meio de suas hostes. Mas três pulinhos!... oferecidos a um oficial graduado?!... 

Terminada a quaresma, voltam os santos aos seus afazeres que é acudir necessitados e infelizes. Os que não têm mais a quem recorrer, senão a meia dúzia de santos desocupados. 

Acabou-se a tristeza pentecostal, o que não nos ajuda muito, pois que há outras tristezas imperativas. Não necessitamos de panos roxos para nos lembrarmos da ingrata da vida. Estão aí a TV e os jornais, que não nos deixam esquecer. Está aí o solão de um verão que se eterniza. Estão aí os ventos as enchentes, os corruptos. Estão aí os aeroportos e o PCC. Memento Homo! Lembra-te que és pó. E nada.

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