domingo, 28 de abril de 2013

Eu vi o relógio da Luz cair

Ruth Guimarães 

Agora, quando a gente passa, pisa de leve, como se ali estivesse um morto querido. Isso fazemos nós, os iconoclastas, que tanto e tão amargamente o odiamos em vida, e o amávamos entretanto, em definitivo, de um modo intenso, sem saber. 

Destroem qualquer coisa na coerência da paisagem urbana aqueles quatro círculos azuis da torre grande, abertos dentro do céu. Têm assim desolados uma tristeza quase humana de órbitas vazias. 

Cada um de nós era um pouco dono dele. E cada um de nós era um pouco seu escravo, pois milhares de milhares de pares de olhos ansiosos o consultavam cada dia, e acertavam por ele, cada dia, algum misero cebolão de bolso, ou algum magnífico Pateck suíço, de quinze rubis, com o nome gravado na tampa de ouro. 

Cotidianamente, era assim. 

Passar fora do horário no ônibus Oriente, ou no bonde Bresser, pela Luz, vindo de todos os pontos do oeste da cidade, para o Largo São Bento, e ouvir as doze badaladas do meio dia (adeus ponto, na repartição!) era esmagador. HORA OFICIAL. Era o mesmo que levar as doze pancadas na cabeça em lugar de simplesmente ouví-las. O desaponto, a ansiedade, o medo, dos atrasados, se transformavam um absurdo desejo de que desse “a louca” nele e ele desandasse dez minutos. Oh! Dez simples minutinhos, por favor! Dez minutinhos... Assim aliciando o tremulamento, diminuindo, diminuindo tanto o milagre que ele parecia qualquer coisa do cotidiano e admissível. Como se houvesse por aí relógios – mesmo o da antiga Estação do Norte, desmoralizado e atrasado, quando não parava de uma vez, preguiçoso como um funcionário da antiga escola, - que tivessem o topete de andar para trás. 

Nessas horas, sim, é que seria delicioso levantar os olhos e encontrá-los em chamas. Incendiá-lo num meio dia de paixão e de pressa, teria a atenuante que tem um crime passional; mas assim como aconteceu foi absurdo. A destruição chegou na calada da noite, com pés de veludo e de sombras, e irrompeu subitamente envolta em labaredas enormes que lamberam o céu. Traição! 

Todos os notívagos se reuniram ali, atraídos pelo impressionante clarão, como falenas. Vieram poetas. Vieram jornalistas, não os que estavam em serviço, mas alguns outros, depois do período de seis à meia-noite nas Folhas ou no Jornal de Notícias. Estava lá Hélio Pompeu, carrancudo como sempre e esboçando não sei que tormentosas realizações interiores. [O Nazário me dizia (e enquanto falava via-se o fogo dançando nos seus olhos felinos):] 

- Horroroso, mas que magnífico espetáculo! 

- Lindo! 

Rostos voltados para cima, luminosos, e embelezados. 

Fico imaginando se o poeta seria capaz de repetir a façanha de Nero, pelo prazer do espetáculo. Seria uma bela maneira de seguir à risca a legenda “ars artis”, que deveria ser a divisa desta cínica geração. 

Toda a gente está excitada. Os diálogos se cruzam vivos, e rápidos e sincopados, na noite vermelha, tendo por música de fundo, insistente e igual, a sinfonia crepitante. 

Um se impressionou pela quantidade de dinheiro queimada ali: 

- Será que está no seguro? – perguntou ansioso. 

Por um segundo pareceu que a estação era dele. 

E um outro dizia: 

- Naturalmente que está. – Assim mesmo, com essa calma e essa segurança. – Esses ingleses não dormem com os olhos dos outros. 

Um mecânico de macacão sujo de graxa, conhecia o Caetano, dono do restaurante que ficava nos baixos da Estação: 

- Cuitado do Gaetáno! – a pronúncia saía sonoramente, adoçadas as consoantes com o acento napolitano. – Cuitado do Gaetáno! Mais de guinhendos gondo de prejuízo, é... 

Pena que seja feio chorar por um simples relógio. Mesmo que seja esse, com uma bela folha de serviço, de funcionário militar. Um amanuense Belmiro sem problemas, inteiriço e disciplinado, com direito a duas licenças-prêmio, de seis meses cada, por assiduidade e merecimento. Pena que não se possa chorá-lo, como uma espécie de reparação, por tê-lo odiado muitas vezes. Esse rígido ditador do tempo. 

Para nos consolarmos poderíamos dizer que teve um fim belo e glorioso, o fim que todos os grande homens gostariam de ter: magnífico canto de cisne, entre chamas, extinguindo-se antes de caducar. E é para contar do seu canto de cisne, que tudo isto afinal está sendo escrito. 

Deixemos de lado a sentimental tendência a esquecer que a hora é uma instituição anti-natural, aceita com tão boa-vontade, como é aceita a morte. E não podemos esquecer também que uma fauna inteira de homenzinhos secos, tinha o relógio sempre impertinentemente certo pelo da Luz. 

Não há por que lamentá-lo. Já passou à lenda, que é o menos ingrato de todos os panteons. Disseram que ele trabalhou durante vinte e cinco anos sem conserto, sem parar e sem atrasar, e isso demonstra que o paulista não é tão farto de imaginação assim, como quer Sérgio Milliet. 

O velho relógio estava belo deveras, cercado de vermelhas flamas inquietas e rugidoras. E o ponteirinho das horas já tinha passado das três. E três pancadas profundas tinham pingado como sempre na amplidão da praça, habitualmente deserta pela madrugada. 

Ele nunca tinha batido a meia-hora – disseram, e nunca ninguém reparou nisso antes. Bateu sempre horas inteiras, coerente, integral e imperioso. Nessa madrugada, bateu 3h30, em desespero de causa. Era a última vez que o velho funcionário público daria as horas e ele parecia saber disso. A multidão aglomerada em frente ao Jardim da Luz, gostou do seu gesto de adeus e o aplaudiu. Palmas para o velho general das horas, na madrugada vermelha. Foi uma espécie de justiça poética a espontânea aclamação; Um minuto depois e ele caiu. Lá em cima a bandeira fulgurante do fogo. O general foi atingido. Caiu! Orai por ele!

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