domingo, 28 de abril de 2013

A revolução das romarias

Ruth Guimarães 

Uma formosa lenda medieval nos conta a história do jogral que, atraído pela serenidade da vida religiosa e a convite dos bons irmãos de uma ordem sua conhecida, tornou-se monge. Levava para o convento apenas um coração contente. Via os companheiros de cela trabalharem em louvor da Virgem Maria: este desenhando capas de livros, aquele bordando iluminuras, outro compondo hinos em honra da Mãe de Deus, outro ainda rimando versos. E só ele, o pobre, o ignorante, o desajeitado jogral, nada tendo para oferecer a Nossa Senhora. Ia-se-lhe a alegria de pensar na sua valia nenhuma. 

- Por que andas triste, filho? Reza e a Senhora te confortará! – exortava o prior, notando-lhe a angústia no semblante, ordinariamente tão alegre. 

Até que um dia reparou que nos olhos e nos lábios do frei João voltava a dançar o antigo sorriso. E rindo continuou o Irmão Jogral a cumprir as suas humildes obrigações, diárias, rezando com lábio anelante, trabalhando com gestos ágeis, andando com passo lesto. Somente que pelo meio do dia desaparecia umas duas horas sem que ninguém soubesse por onde andava. Um dia, o prior, dirigindo-se à capela, por acaso, em hora quente de acalmia, viu frei João... 

Seria aquele frei João? Vestido com roupa de malha verde, justa, modelando as pernas musculosas e o torso largo, guizos dourados pendurados nos ombros e nos tornozelos. E o gorro também verde, enterrado na cabeça, tendo na ponta a borla cor-de-ouro e mais guizos. E que fazia frei João? Santo Deus! Frei João dava saltos mortais sobre um tapete no chão, diante do altar de Nossa Senhora. A cada salto os guizos cantavam argentinos, sacrílegos, no silêncio da capela. Depois que dava saltos, frei João apanhava uma dúzia de bolas e as atirava para o ar, uma depois das outras, em seguida, simultaneamente, e a todas apanhava, agilmente, como um bom pelotiqueiro. 

Sacrilégio! O prior, acompanhado agora de outros dois monges que fora, açodado, chamar, já ia expulsar ignominiosamente da igreja o monge atrevido, quando quedou estarrecido. Nossa Senhora em passos lentos desceu do altar e, muito docemente, enxugou o suor que escorria do rosto afogueado do seu jogral. 

Os caminhos de romaria mais bonitos, como o do Santuário de Compostela, e também as grandes festas anuais do Medievo, eram freqüentadas por artistas ambulantes, poetas, cantores, músicos, escamoteadores, malabares. Dentre eles, destacavam-se os jograis, companheiros dos trovadores. Nestes coexistiam o artista e o saltimbanco, que davam a nota alegre e estimulante, e faziam mais leve a caminhada. 

Os tempos passam. Evoluímos das romarias a pé, para as romarias de motocicletas, de ônibus, a cavalo, e às vezes a pé mesmo, carregando cruzes, rezando, cantando. A jornada em si é a mesma, mas os instrumentos de divertimento são outros, de acordo com a tecnologia de agora. Pode ser que no outro lado do cotidiano, atrás de câmaras, estejam as versões modernas dos jograis e dos menestréis. E ainda vejamos os pelotiqueiros, que com habilidade e graça ainda joguem para cima, sem os deixar cair, os objetos com que se entretêm as multidões. Do lado de cá, no tempo do dia-a-dia, o que se vê ajudando a caminhada do homem em busca de Deus, é o radinho de pilha e o celular.

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