domingo, 28 de abril de 2013

"Esta é a segunda carta que lhe escrevo"

(Carta a Mário de Andrade I) 

Ruth Guimarães 

Mário 
Esta é a segunda carta que lhe escrevo. Preciso me justificar por tê-lo procurado em certa ocasião, impertinente, com algumas obrinhas de somenos, quando você costumava estar tão ocupado, e quando tão pouco tempo lhe restava para viver; 

Primeira Justificativa: 
Eu soube que você jamais deixava de responder a uma carta, fosse de quem fosse, e que acolhia, fraternal, os novos. Assim, antes de o conhecer, recebia a primeira de todas as lições que me seriam dadas: se alguém bater em sua porta, não consista que o faça em vão. 

Segunda Justificativa: 
Eu não conhecia ninguém, a não ser dos livros, lidos no silêncio da noite, no meu quartinho de dois passos de largura, sublocado nos fundos de uma casa de família. Lia, depois de um dia inteiro batendo listas de cobrança e calculando colunas de algarismos nos borderôs de bancos. Sozinha, nem parentes nem amigos, e pobre de doer, de dinheiro e de tudo o mais (nessa grande São Paulo). Ao mesmo tempo, rica de certeza, de uma presciência, de uma esperança, que sei eu? sonhando os sonhos mais doidos. Viver, sempre aceitei como uma grande aventura. 

Terceira Justificativa: 
Você sabe quanto eu era ignorante. Que podia entender de Macunaíma, de Belazarte, de Lamentação sobre o Tietê, da Viagem grandota da Escrava que não era Isaura? E do muito agir e do muito sentir, do muito trabalhar e do muito inovar? 

E o que sabia eu, Mário amigo, do seu Calvário? 

Estou falando da drogaria Baruel e ainda não pus estes comentários na devida ordem. 

Eu queria contar pra você da Baruel, onde encontrei Amadeu de Queiroz. Você um dia me perguntou: conhece aquele farmacêutico, o carimbamba da drogaria Baruel? É uma criatura muito vivida. Ele sabe das coisas. Está na área em que você está, interiorana e rural. Como é mesmo o nome dele? 

A pergunta não era pra mim, está visto. 

Saí uma ou duas horas e depois. E você: 

- Se falar com ele... 

- Sei, o carimbamba – interrompi sem muita cerimônia. – É muito fácil encontrar a Baruel. Eu passo por lá todos os dias. Na última esquina da rua Direita, como quem vai para a Sé... 

- Não vá contar que eu me esqueci do nome dele! 

Ora veja, depois de muita conversa, de observações aqui e ali, de leitura, de recomendar cuidado na escolha das fontes: não misture qualquer um aí com os mestres! preocupação com os sentimentos de um escritor quase desconhecido, que proseava com os moços numa farmácia: não comente que eu esqueci o nome dele. 

Eu estranhava a sua atividade propedêutica e pedagógica, junto a alguns jovens, filhos enfermiços da vida. 

Da próxima vez que eu passei pela Baruel, à noitinha, entrei. 

Você sabe quem encontrei lá? Mário da Silva Brito, que escrevia uma beleza de história do Modernismo, em que você ocuparia um lugar de rei. James Amado, Paulo César da Silva, Fernando Góes, Edgar Cavalheiro, o amigo de todos, o e o Velho Amadeu, como a moçada o chamava. Entrei e por lá fiquei, isto é, passei a entrar todos os dias dali em diante, para a prosinha do costume, em que aprendi aprendi e aprendi. 

Os homens afirmam que não nos é dado desconhecer a Lei. A ninguém é permitido escapar, alegando ignorância. Não nos é dada sequer a atenuante da inexperiência, do não-conhecimento. A inocência é descabida e rechaçada. Ma houve um que disse: perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem.

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