domingo, 28 de abril de 2013

Espírito de Natal

Ruth Guimarães 

Todos temos muitos problemas neste ano da graça de 2006. O mundo e o planeta dispararam enlouquecidos. 

Continuou a girar a roda do tempo, indiferente aos nossos problemas. Aliás, não há por que se preocupar – o tempo resolve a todos. E com esse giro, o natal ficou tão longínquo e desimportante, quando um dia destes, ontem, era uma premência. E então Papai Noel foi convocado para mister que Vós sabeis. 

Antigamente o Natal se equilibrava em três pilares: o presépio, feito no canto da sala de jantar, com a Sagrada família, e mais o burro e o boi. Vindo lá de longe, num caminho de areia e touceirinhas de capim, passando junto ao lago feito de espelho de fazer a barba, os misteriosos magos do Oriente. 

Vinha em segundo lugar a ceia do Natal, com a indefectível bacalhoada: bacalhau, batata e pão, azeite Galo e vinho Carrascal. Entre as práticas da Epifania, vitoriosa, a comilança. Os mais pobres tinham o seu torresminho da leitoa criada em casa com restos de comida catados daqui e dali. 

Por último, depois da reza, a missa do Galo, às onze, para acabar à meia-noite, com bimbalhar de sinos, espocar de foguetes e os agudos do coral das Filhas de Maria. 

A nave cheia, gente até pra fora do grande portal da igreja. Moçada não entrava, ficava passeando em volta, em evoluções estonteadas e entremeadas de riso, de namoro. O bando gárrulo das meninas e o bando expectante dos moços. 

E então Papai Noel foi convocado. Veio das terras geladas, com paramentos de inverno: a roupa vermelha, grossa, forrada de pelo. Trouxe as botas, o gorro, o trenó, as renas. Foi convocado para exercer o mister que sabeis. Ele é um dos deuses do livre comércio. Persuasivo, alegre, amigo das crianças, paciente, bondoso, cheio de exclamações, pago a tanto por hora, em emprego temporário, para nos convencer de que devemos gastar à toa o dinheiro que nos custou a ganhar. 

Como todas as infelizes criações humanas, e como todos os outros deuses e duendes, ele sofre das imperfeições da sua condição: é amigo dos ricos e desconhece os pobres, que não nos ouçam as crianças, principalmente as da zona rural e as da periferia. As das favelas. As que moram embaixo dos viadutos e das pontes. As que vendem balas nos trens de subúrbio. 

Papai Noel, o bom do velho nem passa pelas portas ou cortinas de papelão dos barracos. Alguém já viu esse velhote, amigo das crianças, nos casebres da zona rural? Posso garantir que já viram o Lobisomem, a Mãe de Ouro, o temido Caboclo d’Água, o Capiroto, o Saci, algumas almas de outro mundo, que ainda não acharam o rumo, a Mula sem Cabeça... Mas esse papai Noel não esteve por lá. Ou esteve? 

Conta um caipira que aparecem pelas roças, de quatro em quatro anos, uns homens bem apresentados, de botina engraxada e parelhos de pano fino. Gente sem soberba. Beijam os negrinhos ranhentos. Abraçam as velhas. Prometem mundos e fundos. Dar eles não dão coisa nenhuma. Precisamos comprar. É assim Papai Noel? 

Essa lembrança faz com que alguns o condenem. Mas que mais podemos exigir do simpático velho a não ser os defeitos que lhe emprestamos? Agora a explicação da entrada do amável velhinho se complicou. Ainda neste Natal, um dos meus filhos ficou muito inquieto, pois que, noite paulistana, com chuva e frio, a casa estava fechada, aquecida, impermeável ao vento, certamente, mas permeável ao sonho. E como o pequeno ficasse para dentro e para fora, incomodando meio mundo, e as lufadas de ar gelado penetrassem trazendo de fora a tristeza e o mistério da noite, o pai ralhou. Mas que é isso, menino? Você não tem parada. Falta de sossego! É bom pôr essas crianças na cama; e outras conversas próprias de tais circunstâncias. E ele: Mas, papai, mas o Papai Noel, por onde ele entra? E papai explicou claramente que o bom do velho não teria dificuldades de maneira nenhuma, que se trata de puro espírito, que atravessa as paredes e os telhados e viria sim, estivesse sossegado, entraria... Espírito, papai? Pois é. Passa pelas paredes? Que bacana! – Parecia encantado o garoto. Esgotou todo o seu vocabulário admirativo: Legal! Bacana! Atravessa a parede... Mas de repente ficou sério. Que foi? Você duvida? E ele, numa vozinha incerta, temerosa: E o saco do Papai Noel também é espírito, papai? Fiquei olhando para os dois, para ver como o mais velho ia se sair dessa. Não saiu. Mandou escancarar todas as portas, para o Papai Noel passar. 

Uma objeção contra Papai Noel é que não é brasileiro. Outra objeção é que se trata de uma mentira. E não se pode mentir às crianças, com o que concordo, até sem perguntar maldosamente o que é a verdade? Papai Noel será verdade ou poesia? Ou caridade? Ou o espírito do natal? Há tantas mentiras não tão bem intencionadas, contra as quais ninguém protesta! Mentira é a chupeta. Mentira é usar de complacência, por preguiça, e sob o pretexto de lhe evitar complexos, enquanto a criança reclama ensino. Mentira é não lhe dar irmãos e irmãs. Mentiras são as histórias em quadrinhos. Já se disse que Byron não existiu, nem Shakespeare, e nem Jesus Cristo. Seja. Mas Papai Noel é a pura verdade. Pois se não é ele quem põe os brinquedos nos sapatos, quem é então? Se um homem hoje se chama José e amanhã papai e depois Papai Noel, se o faz por sua livre e espontânea vontade, isto é apenas a continuação do doce, do dulcíssimo mistério da vida!...

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