domingo, 28 de abril de 2013

Essas coisas inexplicáveis

Ruth Guimarães 

Ouvi a voz dela, anasalada, fazendo comentários em altos brados, e me lembrei de quando ela se apoiava num figurão da política. Fazia viagens longas, não repetia vestidos, motorista uniformizado. Fez uma festa de arromba, convidou o mundo da alta roda. Chamou os jornalistas. Festa de aniversário de sua cadelinha Pompom. Não era coisa para durar e não durou. É como se diz no comentário à oração mais poética que existe: “Enquanto dura, vida doçura. Depois que acaba, esperança nossa.” 

Enquanto essa fazia festa grã-fina pra cachorro, outra que comparece na televisão há dias, torturava uma criança. O que mais anda acontecendo com a vida? Onde vamos afinal buscar a alegria sadia de viver. Sem mais comentários, que a história que eu ia contar era outra. Dessas coisas inexplicáveis. 

Pois vê que o Guido não parecia talhado para esquisitices. Estava na idade certa, na classe certa, bem enturmado, meio para o quietão, sem nenhum sinal de pender para o romântico nem para o poeta. Não tirava nota 10, nem ficava no vermelho. Em suma, o tipo do aluno que não dá trabalho. 

Pois que o Guido não era ninguém de escapulir para Pasárgada, foi uma admiração, quando, na hora pós-recreio ele apareceu na Secretaria da Escola, pedindo para ir embora. 

- Por quê? Está se sentindo mal? 

- Não – respondeu, recusando-se a mentir, embora isso lhe rendesse facilmente imediata atenção ao pedido. Talvez. 

Mas o Guido nem mentiroso não era. 

- Não mesmo. Olhem para mim. É que estou recebendo um chamado. Parece que alguém, na ponte, está me chamando. 

- Não diga! – caçoou o Ives. – Estão chamando você da ponte. Dá um acesso de preguiça num e alguém chama lá na ponte. E os palhaços aqui já dispensam o aluno do chamado. Olhe pra mim, vê se eu tenho cara de otário. Não vou nem chamar o seu Adalberto, eu mesmo resolvo. Volte pra classe e vê se não enche! 

Guido virou no pé para trás, passou por trás do palco, chegou pé por pé ao fundo do quintal, fim do recreio, pulou o muro, chegou na rua. E correu. 

Era uma noite de lua cheia, azulada, silenciosa. Uma ou outra estrelinha piscava. As águas do rio deslizavam múrmuras, sussurrando não se sabe que segredos. 

Mal atingiu a cabeceira da ponte, Guido viu a mulher na frente com a criança nos braços, aconchegada. E atrás a menininha, com o guarda-chuva. Parecia que vinham ao seu encontro. Ou era ele que quase as alcançava. Quem sabe o vento? Não deu tempo. A menininha passou por baixo da grade, com aqueles vãos enormes e foi ancorar lá embaixo, nas águas marulhantes do rio, agarrada ao guarda-chuva que pairou sobre o rio. Guido não tirou nem os sapatos. Pulou atrás, a noite era clara, o guarda-chuva marcava o lugar, e ele, filho de gente ribeirinha, nadava como um peixe. Trouxe a menininha nos braços. E aí, que foi isso? De onde veio toda essa gente? Alguns corriam, outros choravam. A noite se povoou de sonhos e de vozes. 

A história foi murmurada por todos, o que aconteceu? Como aconteceu? O professor Adalberto, interinamente na direção da escola, decretou: Foi tudo invenção do Ives. Tudo pra ele é motivo de caçoada. Ele tem muita imaginação. Chamado? Que chamado? Convocou os professores, resolveram condecorar o Guido com uma medalha de honra ao mérito, por ter salvo a menininha, com risco da própria vida – e suspenderam o fujão por quinze dias, por ter se ausentado das aulas sem a devida licença.

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