Ruth Guimarães
Que o Vale é terra boa pra criar gado, já se sabe. Morraria infinita, um sobe-desce repetido em desníveis de quase dois mil metros, Mantiqueira pra cá, Serra do Mar pra lá, no extremo vertical de cada uma o espinhaço franjado de árvores, quase topetes desenhados no horizonte, intervalados por espaços pelados carecas devassados. Tudo dividido em outras serras menores, pra ficar mais fácil de dar endereço. Moro lá, depois do Quebra-Cangalha, nas divisas altas de Cachoeira e Silveiras, dirá o emboava encorpado de chapéu grande e mão grossa de estacar espigas, de socar o pilão. O nome da serra revela, por óbvio, as grimpas quase em pé que burros eram obrigados a subir, à força de berros e lambadas, carregados de jacás de milho, queijo curado, farinha, essas coisas de duração que aguentam a viagem e ainda ficam valendo, por uns dias, pra vender e consumir. O cunheiro que levanta poeira no jipe surrado faz outro caminho, na Serra da Bocaina, que não por acaso quer dizer caminho para o alto. O ocupante dos sertões de Campos Novos, por exemplo, povo mais magro, mais esguio, menos bonachão, há muito deixou o burro restrito à tarefa de empurrar almanjarra na olaria. Vara a serra mesmo é de jipe - ou de bicicleta, que essa não come gasolina nem empaca de ruindade. Na região de Cunha uns veterinários desenvolveram pesquisas genéticas, há coisa de vinte anos, chegando a uma raça de gado boa pra criar em morro. E isso me lembra que eu falava de gado.
Foto de Botelho Netto |
Mesmo no tempo do café, que fez a riqueza de umas tantas cidades, a vocação do Vale sempre foi a pecuária. Fazendeiro, por aqui, equivalia quase a título nobiliárquico, algo da investidura do doutor delegado ou do senhor seu padre. Vai daí, que logo muitos fazendeiros mudaram de curral e se meteram na política. Houve tempo de fazendeiro encher caminhão de peão, nas roças, e carregar pra votar. Hoje não, que a lei eleitoral e a fiscalização são mais sérias. E também porque, que diabo!, o mundo melhora, os filhos de fazendeiros vão pra faculdade, viram médicos, advogados, engenheiros. Mas não deixam nunca de ser fazendeiros.
E por mais que protestem os coronéis, afirmando que são pela democracia, e pelo colarinho e gravata, levam consigo para as Câmaras e Assembleias a predileção pelo mugido, do qual alguns fazem uso muito à vontade. E para lá levam os filhos, que vão alegremente para a política. Para provar que não mudaram de vida – e nem de apetite –, aí estão, sem nenhum protesto, eleitos os filhos dos fazendeiros.
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