Ruth Guimarães
Uma vez comecei uma crônica assim: “Na minha terra, talvez haja alguns descendentes de selvagens indígenas, os bravos tupis. Caboclos até já se perdeu a denominação. Cabocla Teresa é música sertaneja, quase folclorizada, de que já se perdeu a identidade e a origem. Apesar de conhecermos seu autor. Saberá ele do que ele mesmo está falando? Tenho certeza de que 99,5% dos habitantes, que são mais ou menos uns quarenta mil, nunca viram um índio, a não ser na TV ou nas revistas que aparecem por aí, diz-que brasileiras. Temos um dia do índio, não sei pra quê. Eles estão lá nos seus redutos. Donos de um despotismo de terra e nem sequer donos de si mesmo. Desassistidos e desconhecidos. Como raça: assassinados.”
Pois falava de escravidão de certa forma. Sabemos que não é história nova, mas acredito que bater na mesma tecla ajuda a lembrar. Porque tem muita gente achando que isso nem existiu e não vê que algumas recomeçam ao nosso redor.
Os povos antigos conheciam a escravidão, de muito tempo. Remadores, nas galeras, eram cativos de guerra, ou gente aprisionada por bandoleiros e vendida longe de casa. Conforme se vê na lenda e na história, generais, sábios, velhos, crianças, príncipes e princesas, e todo o rescaldo das guerras, eram tantos outros cativos, à venda nos grandes mercados da antiguidade. Sexo, idade, cor, beleza, nada era obstáculo para o sequestro e leilão. Influíam apenas no preço que se pedia. Nas Mil e Uma Noites lá estão os escravos, em todo o mundo árabe, a serviço de potentados.
Escravo foi Esopo, o fabulista grego. José, filho de Jacó e de Raquel, a favorita morta, foi vendido pelos irmãos, como Luís Gama foi pelo pai. Escravo foi por algum tempo Santo Agostinho. Povos inteiros caíram em cativeiro. Ester, ajudada por Mardoqueu, salvou do extermínio o seu povo cativo. Os judeus, em cativeiro na Babilônia, foram salvos e conduzidos por Moisés pelo deserto, até a Terra Prometida. Mas em cativeiro na Segunda Guerra Mundial não tiveram a mesma sorte e perderam seis milhões de irmãos.
A diáspora negra, seguida de medonha escravidão, foi torrencial a partir do século XVI, com a imigração forçada dos povos africanos para as Américas.
No Brasil a escravidão durou trezentos anos, o que poderia supor uma acomodação entre opressores e oprimidos, e entre caça e caçadores, um impossível modus vivendis qualquer. Também se poderia imaginar que esses negros eram resignados demais, passivos que aceitavam o que lhes acontecia, sem reagir.
Qualquer coincidência é mera semelhança!
No entanto, no caso dos negros africanos, nada se sabia a respeito do que acontecia no seio das famílias, nas fazendas, os acidentes, as revoltas. Não se escrevia a respeito de escravos. Guardava-se silêncio quanto às atividades dos negros, com vistas à conquista de um lugar ao sol, por temor de que o conhecimento da insubordinação servisse de mau exemplo para os outros cativos, e que eles se estendessem, descontrolados, em movimentos libertários. Enfim, nada se sabia.
Havia aqueles mistérios cochichados no escurão da senzala, jamais sabidos, jamais propalados. Nunca se soube de um negro escravo ter escrito alguma coisa sobre a sua vida, na senzala ou no eito, nunca se descobriu algum diário, embora alguns negros, principalmente os hauçás, muçulmanos, soubessem ler e escrever. Acima de tudo, não tinham língua. Em que língua devia ser o seu clamor, se o despojaram da sua?
Daí esse enorme silêncio de trezentos anos. Essa gente preta vinha de vários pontos da imensa África. Mesmo entre as nações africanas não tinham comércio umas com as outras, não se conheciam, não tinham um dialeto comum, guerreavam-se continuamente. E faziam escravos. Negros aqui chegados por vezes já eram cativos entre os seus. O cativo, se fugisse, ir para onde? Havia a distância infinita até a África, através do mar infinito, água e céu, água e céu.
O clima era diferenciado, não se tratava do mesmo calor, nem do mesmo luar, nem dos mesmos rios, os bichos eram outros, outra a paisagem não se comida do mesmo modo nem se dormia aqui como lá. Não conhecendo a língua, não havia como protestar. Não conhecendo a região, não havia como se esconder. Talvez passassem despercebidos, apesar do grosso recorte dos lábios, do nariz achatado, da carapinha, de serem diferentes, exóticos. Mas jamais escapariam, vestidos daquela pele preta que os tornava inconfundíveis. Todas as tragédias desse infame interregno se deveram quase que inteiramente à irremovível diferença física, em principal da pele, de tingimento, entre conquistadores e prisioneiros.
Que espessura tem a pele? Milésimos de milímetro. Milésimos de milímetro formaram a extraordinária diferença entre discriminação e igualdade social.
Qual a cor da pele do homem e da mulher e da criança que estão na cracolândia? Estão escravos, independentemente de cor, de sexo, de idade. O mundo civilizado voltou às galeras, ao rescaldo das guerras, à antiguidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário