Ruth Guimarães
Domingo. Sol. Calor. Claridade. Criançada brincando na rua. Pelada no campinho.
Domingo suburbano começa cedo, lá pelas sete da manhã, com algumas brigas nos quintais. É dia de operário estar em casa. Dia de moça lavar a cabeça, enrolar bobi nos cabelos e andar de chinelos. Todo o ressentimento represado numa semana inteira de bom comportamento e contenção, de espera nas filas e atraso na chuva e correria, e cabeça baixa diante do contramestre, estala à menor provocação em casa. Então as vozes alteradas enchem a manhã clara, trazendo caras curiosas aos portões e às janelas. Os portõezinhos ficam muito coloridos e de uns para outros as informações se trocam alvoroçadas.
Lá para as dez principiam a chegar os parentes da cidade. Logo se os conhece por suas roupas bem talhadas, as cores, o calçado mais fino, e o ar. Um ar de passeio, um ar endomingado, parece que pegou ingenuidade neles. Vêm cheios de exclamações e risadas, ocupam a rua toda, voltam-se inteiramente uns para os outros, para indagar: não é mesmo? Não é isso mesmo?
E parece que transbordam de contentamento. Alguns têm volks, outros um jipinho. Gostam de comer pêra dura às dentadas e caqui coração de boi, lambuzando os dedos. Vão inúmeras vezes à adega, assim chamado o depósito de bebidas que é pertinho, buscar vinhos aos garrafões, isto é, a zurrapa infecta que chamam de vinho, e com a qual o almoço ganha em comunicabilidade e animação. Partem com muita algazarra às quatro e meia. Acabadas as brigas e as visitas do domingo suburbano, como um grito à distância, como um eco. O eco firme das marteladas nas cumeeiras, os caibros e ripas desenhando xadrez contra o azul do céu, meio acinzentado, e sobre o outro xadrez das paredes de tijolo ainda sem reboco.
A música esteve pela manhã, pam-pam, acompanhando os risos, as brigas, o coro báquico dos almoços macarronada e vinho, os estouros da número cinco nos jogos de várzea em campo aberto. Entrou sozinha, vencedora pela tarde serena. Os pica-paus humanos empoleirados nos tetos empunham os martelos na rítmica demonstração. Alguns, raros, vão noite a dentro, e lanternas brotarão no ar, em loteamentos onde a luz elétrica não chegou. (Geralmente o luar não colabora. A lua é alcoviteira de namorados, não se dá com trabalhador) Enquanto dia a fora, a ária dos martelos bate, há para ela um acompanhamento singular: o rumor dos caminhões carregados, ronronando pelas ruas. Muitos. Que fazem eles? Boa pergunta! Quem já viu um domingo suburbano sem mudanças? O dia todo elas passam, essas mudanças, em que os tarecos se amontoam num caminhão só, e levam de uma casinha de dois cômodos e cozinha, para outra de dois cômodos e cozinha, a cama do pobre e o caixote de panela do pobre. E enquanto nesse formigueiro, os homens que trabalham na semana se mudam no dia santificado, e enquanto o que martelou por conta do patrão de segunda a sábado martela por contra própria no domingo, não importam a inflação, nem a carestia, nem a vida brava, nem a politicagem, nem as malversações, nem as más intenções, nem o governo nem o desgoverno, São Paulo continua sendo a cidade que mais cresce no mundo.
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