sábado, 27 de abril de 2013

Dia brasileiro número 2

Ruth Guimarães 

Anamérica e Anistela pescavam traíra no açude, tio Darwin estava escutando os passarinhos, Anamélia andando a cavalo, os meninos jogando bola, as moças tomando banho de rio, alguns moços jogando bilhar, no salão, Clarinha pintando espigas de trigo nos guardanapos do jogo americano. Na rede branca de franja eu não digo quem estava, e nem quem se afundou escarrapachada na cadeira de balanço, e nem quem estava chupando manga sem parar, manguinha rosa, sumarenta, a mais doce do mundo. (Que fui, mesmo, chupar, deliciadamente a dourada manga rosa da casa dos outros, só para me vingar da minha mangueira. Isso outro dia eu conto) Pois estávamos todos assim em santa paz, eis senão quando, como se diz nas histórias, um grito, um só, destruiu tanto bucolismo e beleza. “Gente! (Era a Ditinha) Gente! Quem vem tomar café com bolão que a Prisciliana fez?” Imediatamente largaram das varas de pescar, de escutar músicas de curió, do cavalinho tordilho, da bola, do rio, do bilhar. E até da rede. E até da cadeira de balanço. E até das mangas (sumo cor-de-ouro, mel melaço, mais doçura do que beijo de amor) e todo o mundo correu para a mesa. Pessoal esganado, nunca vi. Nem parecia que tinham vindo do mangueiro, e que alguém bebeu cada copo de leite espumante, copo de alumínio de litro, com açuquinha muito, melado no fundo. E que alguém repetiu. E que escorropichou para aproveitar a espuma. Depois limpou os bigodes de leite com as costas da mão, mas não inhantes de passar a língua, olhando dos lados para ver se ninguém estava vendo. Mas aquela mesa era uma coisa desesperada. Tinha leite. Tinha café-preto-forte-tinta. E tinha café fraco e doce, e tinha café com leite. E sonho de casca torrada, por dentro um creme, ainda estava quente de queimar a língua. E tinha mandioca-vassourinha cozida, em rodelas, abrindo-se como flor, e alva como farinha. E tinha farinha-de-milho, beiju, em hóstias de ouro. E tinha o bolão da Prisciliana, dourado e fofo, rei da mesa, casca mais grossa, relumeando, cheiroso, cheiroso... 

Nem conto o resto, mas posso cantar outro exagero. Ali, diante da porta da cozinha, ciscando a grama, estava o jantar, ainda vivo, grandes frangos de crista vermelha. O que vale é que o dono da casa é médico. Essa gente ainda vai ter um troço. 

(Rede balançando, sonolenta, ao balanço do pé, cada vez mais pesado e cada vez mais lento, rede rangente, rangendo em dois tons, um bem alto, outro bem diferente: nhen... nhen...).

Botelho Netto
"Tio Darwin e Tia Clarinha"

Nenhum comentário:

Postar um comentário