sábado, 27 de abril de 2013

De paineiras e de passarinhos

Ruth Guimarães 

Certas pesquisas me levaram a uma aldeia, atrás da Serra da Mantiqueira, precisamente no ponto que se chama Gigante-que-dorme no lado paulista, e Cara-de-Cão do lado dos mineiros. Por aí se vê com que se parece a azulada serrania. Sobe-se por ela, coleando, numa estradinha de terra, estreita, sem sinalização, cheia de altos e baixos, precisamente o paraíso do motorista desprevenido. São quatorze quilômetros desse caminho. Uns bichinhos de focinho curto e olhos redondos espiam por detrás das moitas e saltam repentinamente para trás, provocando um ruflar de asas do passaredo assustado. Entramos aqui, vindos de outra estrada. Ah! essas estradinhas mineiras, umbrosas, com grandes arcos de folhagem e miríades de flores e lianas se entrelaçando! Por toda a parte, as básicas da primavera. O verde absoluto, o verde-claro, o verde-água, o verde-gaio. E as cores básicas da primavera cabocla: roxo amarelo e vermelho. E cada moita, cada árvore albergando o enxame das vespas, e o povo zangado das arapuás. 

Que passarinhos são esses? Saltitam, se estão no chão. Esvoaçam pelos galhos mais baixos, gorjeando, à batuta da grande orquestra da natureza. Que pássaros são esses? Pasmem! Canarinhos da terra, cabecinhas-de-fogo, soltos, aos milhares, em bandos, barulhentos, sem nenhum caçador por perto, nenhuma gaiola à vista, e nenhum gaioleiro, trançador de taquara, num raio de quilômetros em torno. 

Lembro-me que pelos fins dos anos sessenta e setenta, a censura era um osso duro de roer. Éramos quatro na crônica diária da Folha, Cecília Meireles, Heitor Cony, Padre Vasconcelos e esta que vos fala. Viver era um negócio sem medo e sem perspectivas. Escrever, pior ainda. O permitido era um lirismo aguado, falar da natureza e de auto-ajuda, contecências da rotina diária e nada mais. Nenhum subentendido, nenhuma crítica. Um dia, ensaiei uma rebelião. Nunca mais vou falar de paineiras e de passarinhos. 

Minha avó costumava sentenciar: “Nunca diga: dessa água não beberei.” 

Hoje ninguém me pede contas do que escrevo, a não ser o leitor habitual. Há um leque imenso de temas, de assuntos, de acontecências. A vida corre num ritmo frenético e temos muito que pelejar para alcança-la. 

Abro os jornais, e o que leio? Ligo a televisão e o que vejo? Converso com os amigos e o que ouço? 

Aqui é o plebiscito sobre o desarmamento, com a pergunta solerte incluída: “que tal desarmar o cidadão, deixando-o sem escolha, e esquecer o criminoso armado?” E a outra pergunta famosa: “O Lula sabe ou não sabe?” E lá está o Congresso legislando em proveito próprio. E o orçamento, por quê não foi votado? Por que jamais dá tempo para as atividades que interessam ao povo? E a ominosa CPI dos Correios? Não vai dar em nada? 

E então, o carnaval, ora viva! Que sempre acontece alguma coisa que simplesmente acontece. 

Em face desses variados assuntos, é só escolher. 

Já disseram de nós brasileiros, que não somos um país sério. O trabalho do cronista, pelo tanto que funciona e que influi, também não é. Vem-me a tentação de andar a pé por aí, sem lenço, sem documentos, como quer o cantor. E veemente, firme, arrogante, animada e resolutamente passar para a crônica anódina, enfeitada, social, no seu sentido mais aleatório. 

E somente falar de paineiras e de passarinhos.

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto

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