domingo, 28 de abril de 2013

Desmascarada

Para Ilka 

Ruth Guimarães 

Devia andar lá pelos 5 anos e meio quando a fantasiaram de borboleta. Por isso não pode defender-se. E saiu à rua com o ar menos carnavalesco deste mundo, morrendo de vergonha da malha de cetim, das asas e das antenas e, mais ainda, da cara à mostra, sem máscara piedosa para disfarçar o sentimento impreciso do ridículo. 

Por isso a fotografia de ar emburradíssimo, as pernas magras retesadas numa atitude bem pouco promissiva de vôo, as mãos segurando duramente as asas, como se quisessem tornar bem evidentes que eram de pano sobre arame, não carne de esqueleto. Agüentou tudo com heroísmo: a posição ereta, o olhar em frente sem nenhuma piscadela, as rosas de papel jogadas a seus pés (pois como se deixaria imortalizar uma borboleta, sem o indefectível cenário de jardim?) Agüentou tudo, sim, mas sem um sorriso. Daí o olhar assustadiço, agressivo, insulado na cara emudecida e de expressão pouco infantil. 

Só pelo olhar se reconhece e a reconhecem os amigos comprovadamente íntimos, a quem ousa mostrar a fotografia, quando há vontade de rir de si, grande ou menina. Só pelo olhar desmascarado, gritante, que procura fugir ao abrigo dos cílios para berrar ao mundo o quanto existe, mas se contém calado e grudado nas órbitas limítrofes. 

E pensa agora, dia a dia, no valor metafísico da fotografia em sua vida. Por que nunca se lembraram, por exemplo, de a fazer sair de anjo em alguma procissão de dia santo? As asas, pois, teriam tido uma outra dignidade: brancas, róseas e azuladas, enormes saudações celestes acima da cabeça, onde a aureola de papelão dourado teceria um começo, precário mas começo, de ascensão. As asas da sua borboleta, coitadinha, eram de cetim verde, sarapintadas de estranhos arabescos e montadas sobre uma incomoda armação de teso arame. Difícil se tornava com elas atravessar qualquer portão ou entrar nas salas e nos quartos. Teve de andar quase de lado durante aquele carnaval. E as antenas a picavam: dois alfinetes espetados na corola dos cabelos, como pontos-de-interrogação que estivessem tentando estabelecer contacto com a flor do espaço, imensurável, misteriosa e intocável. 

E daí, que aconteceu? Desabou-lhe na cabeça a poesia: essa coisa a agüentar, de mel e espinho, essa incurável timidez de asas retorcidas, o silêncio agônico, a solidão ardida, as cinzas. E o coração a borboletear sem flor definitiva. Mas não há de ser nada. Ela aceita o destino de anjo frustrado. Ela agüenta as antenas, as asas de arame e o olhar desmascarado: tudo isso pesa e dói, ninguém sabe como dói (só quem se tivesse vestido de borboleta algum dia saberia). Agüenta tudo isso, sim, porque a fantasia era, apesar de tudo verde. E lhe ficou também qualquer coisa de esperança teimosa nos olhos agressivos, essa coisa irremissível, que sanguessuga a vida até quando não tem gosto de vida, essa angustia do mel que se rasga nos espinhos, esse constante exercício de alegria (pois quem compreenderia uma borboleta verde e triste?), essa impressão de coisa leve e ágil que é a palavra quando esvoaça sem querer dos lábios, essa dançarina distraída que lhe escapa sempre a rir, essa ridícula menina que não vê que está crescida, que ficou seriíssima e que não suporta mais com paciência suas tontices líricas. 

Só uma coisa ela passou a temer ultimamente: está ficando cada vez mais difícil transportar as asas e as antenas pelas ruas tão estreitas. E há também quem cace borboletas para espetá-las nas paredes como enfeite. Por isso está com medo: que é possível mesmo que chegue o dia fatal em que já não tenha a coragem de mostrar a fotografia para ninguém, quanto mais para si mesma. 

E daí, como viver, se a voz não adeja?

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