Ruth Guimarães
E então a moça contou essa história assim:
Lembra-me que se tratava de um jovem professor.
Era um jovem professor, sem muita dedicação, casado havia pouco. Salário de professor era pequeno, abriu uma lojinha de armarinhos. Ia vez por outra por semana, pois que não tinha todos os dias ocupados em aulas, ia a São Paulo, fazer compra. Exatamente. Na rua 25 de Março, aquela. Casa Koraiche, naquele mundo árabe de São Paulo. Às vezes eu ia também. Família grande, muita criança, fazer compra em São Paulo era uma boa pedida. O professor ficava trançando com os árabes, no arrabatacho, eu me aproveitava para ir ao mercado, às fábricas, era isso aí. Aos sebos. Aquele ou aquela que estava com um dia livre ia também. Sempre às terça-feiras.
O jovem professor sempre tinha companhia. Ele geralmente não saia da 25 de Março. Ia ora numa casa, ora noutra, terminava sempre por fechar o seu pacote de ocasião, lá para as 18 horas, na casa Koraiche. Essa aventura não era toda as semanas. No máximo uma vez por mês, e os acompanhantes variavam. Não sei o que cada um fazia. Eu aproveitava para visitar os sebos da Sé, as livrarias da Barão. A biblioteca Mário de Andrade, ao Gazeau, alguma compra pequena, que o dinheiro era pouco. Às seis horas era a grande viagem para o Vale. E assim foi e assim era.
Certo domingo ao almoço, meu marido falou. Você quer ir a São Paulo terça, na carona do Celso? )já tinha virado instituição) eu também vou. E nós dois nos aprontamos alegremente para a terça-feira. Eu como de costume nos arremedos de cultura. Meu marido ia comprar material de fotografia e se perdeu por lá, na Santa Efigênia.
Findas as compras, fomos para a casa Koraiche, a última, o professor já estava lá, sentado a um canto, com as mãos no rosto, a imagem viva da desolação.
- Foi assaltado? Perguntamos.
A irmã dele morava no Carrão, ou na Quarta Parada, por aquelas bandas no bairro dos Pimentas, no alto de uma ladeira. Um caminhão desgovernado tinha atropelado a moça e um filho de dez anos. O menino escapou a irmã tinha sido arrastada pelo caminhão e morreu.
- Vamos lá – resolveu meu marido. Nós ajudamos no que for possível. Se você quiser, eu dirijo. E lá fomos nós, para as bandas da Penha, ou Carrão, ou Vila Manchester. Lá fomos nós.
Foi uma noite tenebrosa. Os dois homens que chegaram tiveram que lidar com os parentes, estes completamente sem ação e sem dinheiro. Foi um tomar providências, um lidar com papelada, ir à polícia, atender inúmeras pessoas, resolver a respeito de um sem número de providências, organizar o velório. A noite foi uma loucura.
De manhã, depois do enterro, rumo ao Vale. O professor, durante o percurso, vinha lavando o rosto e molhando a cabeça, para espantar o sono. Foi um caro custo chegar em casa.
Dois dias depois, estávamos sentados a um canto da sala, sem conversar, de repente, meio sem propósito, meu marido, que me olhava como que pensamenteando, com esse tipo de ar ausente de quem olha pra dentro, saiu-se com esta observação:
- Que coisa isso que aconteceu, hein?!
Fez uma pausa, com o mesmo curioso ar ausente e continuou:
- Se você tivesse me contado isso, dessa maneira, ... Ninguém ia acreditar. Até que foi bom eu tivesse ido...
Por quê chorei incontrolavelmente, ao me lembrar da família sinistrada, que eu nem sequer conhecia antes? Por que me vinham à lembrança tempos ingênuos? Por que sonhamos acerca da natureza das pessoas?
Vida, envolve-me em teu silêncio, em tua ignorância, não me faças doação do conhecimento. Não quero acreditar que a gente vê somente o que a gente é.
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